Alicia Keys me devolve a esperança na música – por : Emir Ruivo

Eu deixei de ouvir música como ouvi um dia. Quando você passa trabalhar dentro de um estúdio com som alto por 8, 10, 12 horas por dia, em geral, tudo o que quer ouvir ao chegar em casa é o lindo som do silêncio.

Mas o show de Alicia Keys está me trazendo uma sensação que eu não lembro de sentir há um bom tempo. Foi a sensação que senti pela primeira vez ouvindo Made in Japan do Deep Purple, ali nos meus 12 ou 13 anos. De repente tudo fez sentido. Parecia que a humanidade estaria salva enquanto aquele disco pudesse rodar em algum tocador de CD sobre a terra.

Eu jamais voltei a sentir isso na mesma intensidade, mas senti coisas semelhantes diversas vezes. E estou sentindo agora.

Talvez Alicia Keys me faça sentir que a música pode estar salva, afinal.

Alicia é o anti pop-selvagem. Ela dança, mas não precisa dançar loucamente pra fazer um ponto. O ponto está lá, na música. Ela faz movimentos que qualquer um que tenha ritmo poderia fazer. Ela é linda também, mas é uma beleza humana. Parece até ter uma barriguinha discreta. Mas ela é mais charmosa e sensual que qualquer outra mulher que pisou naquele palco.

Ela é tão charmosa que a Maria Gadú ficou linda ao seu lado. Os leitores do Diário sabem que gosto muito da Maria Gadú como cantora, mas sempre a achei masculinizada. Mas lá estava Maria Gadú ao lado da Alicia Keys, parecendo que bebia da graça da americana, e resplandecia como eu jamais a vi antes.

O que Alicia Keys faz é soul. Tem um pouco de rock, um pouco de pop, um pouco de rap. Com ela, o R&B com o qual flerta de tempo em tempo faz justiça à designação de rhythm and blues.

E ela força a voz, fica rouca. Desafina de leve. Mas não se rende ao playback. Na última música antes do bis, que está tocando agora, eu posso ouvir o fundo da sua garganta. “No one can get in the way of what I feel for you”. Está forçando a voz. Sorri feliz com o show que faz. Não faz pose de mais.

O leitor do Diário há de se perguntar: porquê eu estaria impressionado com Alicia Keys só agora? Porque só agora eu pude ouvir um show de cabo a rabo. Conheço bem os arranjos de deus álbuns de estúdio. Mas ela é um tipo de artista que gosto: cresce no show. E não é por pirotecnia. Ela cresce mesmo. Poderia crescer num banquinho no parque do Ibirapuera. Contanto que tenha um palco, ela vai crescer.

Beyoncé é a grande diva pop do momento. E ela é boa, muito boa. Quem é melhor, Ruivo? Para mim, Alicia encontra emoções mais profundas. Mas é interessante que Alicia provavelmente jamais ocupará esse posto. Isso não diz muito sobre Alicia. Diz sobre o nosso mercado. Diz também sobre a humanidade.

Mas ela não precisa ser rainha. Ela é boa demais para ser rainha. Alicia Keys parece muito mais uma senadora ponderada da corte, com a qual os aldeãos vão buscar consolo.

É uma pena que o Multishow (que, para ser justo, está fazendo uma ótima cobertura este ano) não tenha a menor ideia do que tenha visto. “Alicia Keys mostrando que é uma grande cantora, uma grande pianista”. Não é isso. Quer dizer, é isso também, mas a backing vocal dela, que fez um belo solo, tem mais voz que Alicia. Isso é muito pouco diante da grandeza de seu trabalho.

A Alicia Keys pode salvar a música.

É isso.

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Sobre o Autor

Emir Ruivo é músico e produtor formado em Projeto Para Indústria Fonográfica na Point Blank London. Produziu algumas dezenas de álbuns e algumas centenas de singles. Com sua banda, Aurélios, possui dois álbuns lançados pela gravadora Atração.

 
 
Fonte: DCM

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