Andreas Richthofen, Loemy e por que só nos comovemos com o crack uma vez ao ano

Para entender a comoção causada pela internação forçada e pelas condições em que foi encontrado Andreas Richthofen, basta resgatar o caso da modelo Loemy, encontrada há poucos anos na Cracolândia, e que estampou capas de revistas e portais. Ambos os casos mostram que o problema do crack só é motivo de comoção quando a vítima não é negra e nem pobre

Por Ivan Longo  Do Revista Fórum

Andreas Albert von Richthofen, irmão de Suzane, que tinha apenas 15 anos quando a irmã matou os próprios pais, em 2002, foi internado de forma compulsória na tarde desta terça-feira (30) depois de ser detido ao tentar pular um muro em uma área frequentada por usuários de crack, na zona sul de São Paulo. A notícia de que um Richthofen havia sido encontrado maltrapilho e em cracpéssimas condições por conta do suposto consumo de crack e de outras drogas correu os principais portais de notícia e foi motivo de comoção imediata.

A situação lembra o caso da modelo Loemy que, no final de 2014, foi encontrada em estado deplorável na região da Cracolândia. Loemy, natural do Mato Grosso, tinha uma carreira promissora de modelo que foi abandonada em virtude do uso do crack. A comoção pela modelo loira e de olhos verdes também foi instantânea, rendendo até uma capa da revista Veja São Paulo e um especial no programa televisivo de Rodrigo Faro.

O caso mais recente, do Richthofen, vem em meio a uma intensa campanha de “acabar” com o crack na cidade, promovida pela prefeitura de São Paulo. Ações de truculência com o uso da Polícia Militar, limpeza das ruas onde se concentram usuários, demolição de prédios e internações compulsórias são os principais recursos que os governos municipal e estadual vêm utilizando para lidar com a dependência química nas ruas e que ajudam a reforçar a tese de que o crack é a causa, e não a consequência de um problema maior. Tanto o exemplo de Andreas quanto o de Loemy ajudam a mostrar que o crack não é uma condição que pertence exclusivamente aos negros e pobres. Mas escancaram, por outro lado, o quanto a comoção é racista e classista uma vez que a manchete sobre crack só não é policial quando a vítima é um branco, um rico ou um famoso.

As pessoas acabam partindo do princípio de que a droga colocou aqueles usuários em situação de miséria, quando na verdade foi a miséria que os levou à droga. Essa vitimização da pessoa pela sua aparência e status social é extremamente perigosa. Quando é branco e rico, é vítima. Quando é preto e pobre, culpado”, alertou o psiquiatra Dartiu Xavier em matéria veiculada pelo SPressoSP à época do caso de Loemy. Dartiu é diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes), da Universidade Federal de São Paulo, e uma das maiores referências do assunto.

A miséria que pode levar um indivíduo à dependência química que foi citada por Dartiu, inclusive, é fruto, na maioria dos casos de dependentes químicos que vivem nas ruas, de histórias pessoais que levaram a abalos psicológicos. Pessoas assim compõem a chamada Cracolândia. Mas a maioria é negra e pobre, e só sabemos das histórias de vida por trás do crack quando é um Richthofen ou uma Loemy.

“Isso demonstra que por trás de cada pessoa que está lá tem uma história de vida que precisa ser levada em consideração”, comentou, pelo seu Facebook, o advogado Ariel de Castro Alves.

Também na matéria do SPressoSP sobre o caso da modelo Loemy, a historiadora Luzia Souza deu pistas sobre o porquê negros e pobres recebem uma atenção diferentes em pautas como essa.

“Desde que o crack passou a dominar o cenário das grandes cidades, sobretudo de uma cidade como São Paulo, essas pessoas causam ódio, nojo e incômodo. Assim se tornam invisíveis. Não seria nada bonito, nem saudável, nem venderia revistas, colocar negros na capa, isso jamais emocionaria as pessoas, assim como também ninguém se emociona quando um negro não passa despercebido ao ser morto, ou espancado, confundido com bandido. É normal”, afirmou.

Na mesma linha vai o artigo do advogado criminal Marcelo Feller sobre Andreas. “Sabe esse embrulho que dá no estômago e esse aperto no peito ao ler que o Andreas, irmão da Suzane Von Richthofen, estava na cracolândia? Então. Cada um daqueles que estão ali é um Andreas. Cada um tem uma história terrível. Cada um teve parentes assassinados, famílias destruídas, histórias desmontadas. Se soubéssemos da dor de todos ao nosso redor, talvez viveríamos num constante estado de amargor, paralisados”.

Andreas Richthofen e Loemy são a prova: o crack só comove uma vez ao ano. E olhe lá.

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