Anhamona de Brito: juventude negra e a morte anunciada

Gabriel García Márquez, em 1981, lançou o livro Crônica de uma Morte Anunciada, onde retrata o assassinato do jovem Santiago Nasar, praticado pelos gêmeos Pedro e Pablo. Na estória, aquela era uma morte anunciada:  toda a cidade na qual a trama se desenvolve sabia que Ela estava à espreita, podendo acontecer a qualquer momento. Mesmo assim, nada foi feito para impedí-la.
Para quem está acostumado ao seu marcante realismo fantátisco, essa obra, ao meu ver, é a mais objetiva do saudoso Gabo. Utilizando-se de um arranjo literário peculiar, ele promoveu uma reconstituição cadenciada, em que descreve o passo a passo do dia do crime a partir da memória de algumas pessoas, como uma espécie de quebra-cabeças sendo montado a cada página.

Do: Correio24Horas 

Se as primeiras linhas já indicam o final do protagonista, a narrativa dos acontecimentos é inigualável. Apesar da omissão, os citadinos não passaram incólumes à morte. Suas consciências atormentaram-lhes, fazendo germinar o remorso e o peso da responsabilidade não assumida. Seus sonhos e outras formas de premonição deram-nos pistas do quanto sabiam do passado, do presente e do futuro iminente, bem como a sua contribuição no caso.

A trama assemelha-se, em muitos níveis, com o que acontece diariamente com a nossa juventude. Os jovens brasileiros – sobretudo os negros e de condições econômicas menos favorecidas – estão morrendo em escalas epidêmicas, para não dizer genocidas. Todo mundo sabe disso e pouco, ou quase nada, tem sido feito para garantir o direito à vida dessa população, frente a uma baixa de 80 pessoas/dia e 30 mil pessoas/ano. Esta afirmação hiperbólica não é hiperbólica, e sim real, já que, agora em dezembro, a Anistia Internacional noticiou que denunciará à ONU a questão do extermínio da juventude negra.

Os jovens negros, ao saírem de casa pela manhã, não sabem se retornarão aos seus lares. Mesmo considerando a “morte” como o único evento certo na nossa passagem pela Terra, não podemos aceitar a dizimação deste grupo. Infelizmente, nossa população tem adotado a mesma postura que os conterrâneos de Nasar: apesar de saber que Ela está à espreita, nada faz. Do inconsciente coletivo emerge uma tendência à naturalização das mortes, a qual se estrutura no racismo que impregna as relações sociais, as escolhas políticas, o gozo de direitos e oportunidades, o respeito à vida.

Partindo daí, um sorriso de aceitação cúmplice adorna o rosto social a cada corpo de jovem negro estendido no chão. A justificativa propagandeada é a de que as vítimas compunham o rol dos criminosos, sendo responsáveis pelo atual estágio de insegurança e medo espraiado na cena pública. Etiquetam-nas como perigosas por natureza, as quais têm na deliquência o seu destino.
O que tem sido feito para reverter o cenário passa ao largo da sua inclusão nos debates e nas prioridades sociais. A juventude (e a negra em particular) precisa constar na agenda de desenvolvimento econômico e social de maneira efetiva, não somente retórica.

Por enquanto, aos jovens negros, anunciamos a morte como saída socialmente aceita. Até quando?

* Anhamona de Brito  é professora de Direito da Uneb

Leia mais Sobre Violência Racial e Policial

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...