Anistia: Brasil trata violência contra jovens negros como “parte da paisagem”

Oito em cada dez jovens mortos no Brasil são negros – a maior parte por armas de fogo. Nos últimos 10 anos, a violência letal contra jovens negros aumentou em 30%. A guerra às drogas acabou virando uma guerra às juventudes das periferias das grandes cidades do país. E a resposta da sociedade brasileira a este massacre é a indiferença. É o que diz nesta entrevista Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil, que lançou em novembro do ano passado a campanha “Jovem Negro Vivo”, com peças publicitárias e um manifesto online que já conta com 28 mil assinaturas. Confira.

Por Rogério Jordão Do Yahoo

 Rogério – A violência contra jovens negros vem aumentando?

Atila — O aumento da letalidade pode ser verificado nas estatísticas dos últimos dez anos. Nesse período a violência letal entre os jovens brancos caiu 32,3% e entre os jovens negros aumentou 32,4%. Ou seja, os homicídios de jovens negros são um dos principais pilares que sustentam o aumento das mortes. O outro pilar é a indiferença com a qual a sociedade e o Estado tratam essas mortes, como se já tivessem passado a fazer parte da paisagem natural de nossas cidades.

Rogério – Como a indiferença se expressa?

Atila — Temos percebido que a sociedade está em negação e trata o alto número de homicídios como se eles fossem parte da paisagem. Isto acontece tanto porque as pessoas que convivem com as mortes já naturalizaram esta situação, como se ter parentes ou amigos assassinados fizesse parte da rotina, e também porque são jovens negros morando na periferia. A maior parte da classe média e alta não está preocupada com o que acontece tão longe de seus olhos. No início de janeiro, para citar apenas um exemplo, vimos o menino Patrick de apenas 11 anos ser morto com tiros de fuzil pela polícia, em circunstâncias que levantam muitas dúvidas sobre a legitimidade dessa morte, que é uma tragédia seja por qualquer ângulo que se olhe. E isso, uma morte de uma criança a tiros de fuzil, não gerou comoção, primeiras páginas ou escândalo. É isso que chamamos de “naturalização”.

Rogério — O site da Anistia diz que há muitos “preconceitos e estereótipos associados a estes jovens (negros)”. O que isso tem a ver com a questão da violência?

Atila — O contexto de guerras às drogas acabou declarando guerra aos jovens da periferia e das favelas, que em sua maioria são negros ou pardos. Desta forma, o estereótipo do bandido, do favelado, reforça estes preconceitos, inclusive institucionais, na segurança pública. Na ocasião do lançamento da campanha, conversamos com alguns jovens e todos sem exceção já haviam sido abordados de forma violenta pela polícia, como se ser negro e morador de favela tornasse todos suspeitos de tráfico de drogas.

Rogério – Quais os objetivos da campanha Jovem Negro Vivo?

Atila — A campanha é uma iniciativa relevante em um contexto de aumento do número de homicídios no Brasil. Nunca se matou tanto no país. Em 2013 foram 56 mil homicídios. O principal grupo vítima dessas mortes são os jovens, em particular negros, muitos deles moradores de favelas e periferias – há uma tendência nos últimos anos de aumento do número de homicídios entre a população jovem negra e diminuição entre a população jovem branca. O perfil de grande parte das vítimas (homem, jovem, negro), aliado a um contexto de preconceito e racismo, contribui para que a sociedade não se mobilize para enfrentar esse problema e exigir um basta para essas mortes. É como estivéssemos dizendo que algumas vidas valem mais do que outras.  É aí que entra a Anistia Internacional. Nesta primeira etapa, a campanha dá visibilidade para estes números e convida a sociedade brasileira a deixar a indiferença para trás e assinar o manifesto “Queremos ver os jovens vivos”.

Rogério — Por que os jovens, e sobretudo os negros, são as principais vítimas de homicídios no Brasil?

Atila- Não há uma única explicação para a alta taxa de homicídios de jovens negros. Há vários fatores que podem contribuir para explicar a alta taxa de homicídios entre os jovens, especialmente os negros, entre elas: A banalização da violência na sociedade brasileira, sendo a violência aceita como forma de resolução dos conflitos (mata-se por muito pouco); a naturalização e a indiferença de parte da sociedade a estas mortes; falta de políticas públicas efetivas para a redução da violência letal; alta disponibilidade de armas de fogo; o racismo e estereótipos negativos associados à negritude e aos jovens negros (por exemplo, jovem negro morador de favela ser sinônimo de traficante ou bandido); alta letalidade da polícia, impunidade – menos de 8% dos homicídios são levados à justiça – o que alimenta um ciclo de violência.

Rogério — Qual o retorno da campanha até agora?

Atila- O lançamento da campanha ocorreu em novembro, mês em que se comemora o Dia da Consciência Negra, em um evento que contou com várias manifestações culturais (como passinho e duelo de barbeiros). Até o momento, já conseguimos cerca de 28 mil assinaturas para o manifesto. Também obtivemos apoios importantes, especialmente entre organizações de direitos humanos e familiares de vítimas da violência. O engajamento dos próprios jovens é muito importante para uma mudança dessa realidade. A campanha também vem tendo bastante visibilidade na mídia e apoio significativo de personalidades públicas, parlamentares e artistas. Mas precisamos muito mais para romper com a barreira de silêncio que prevalece em relação a essas mortes.

Rogério — Apenas entre 5% e 8% dos homicídios no Brasil são levados à Justiça. Por que esse número é tão baixo?

Atila — Em geral, por falhas na investigação, na perícia, na reunião de provas que possam constituir um inquérito policial que, de fato, vire um processo criminal.  Existe também um descaso generalizado de todas as esferas do sistema de justiça que não cobra maior eficiência dos organismos. Enquanto a redução de homicídios não for uma verdadeira prioridade do Estado, em todos os níveis e instâncias, não veremos mudanças significativas nessa realidade.

Rogério — Quais políticas públicas poderiam melhorar este quadro?

Atila — A redução do número de homicídios deve ser uma prioridade. Políticas de inclusão social e oportunidades para estes jovens são essenciais, assim como a reforma da segurança pública, a quebra do paradigma da guerra e da militarização. Também precisamos romper com a inércia em relação à política de guerras às drogas, questionada cada vez mais no mundo inteiro, que tem aumentado a criminalização da juventude pobre e das periferias. É preciso sair da lógica do confronto e investir em inteligência, integrar as polícias, treinar e valorizar os agentes de segurança. Deve-se se lembrar que a polícia no Brasil é uma das que mais mata no mundo, mas também é das que mais morre. Enquanto a segurança pública não for levada a sério, isto não vai mudar.

Rogério — Há exemplos bem sucedidos de políticas públicas que tenham feito baixar os índices de homicídios contra jovens negros?

Atila — Sim. O programa Juventude Viva, do governo federal é uma iniciativa importante, mas que padece da falta recursos e escala. Esperamos que outras políticas nacionais – como o Juventude Viva – e políticas de redução de homicídios de jovens sejam criadas e fortalecidas. Infelizmente ainda não vemos sinais claros de que isso vai acontecer. Recentemente, em entrevista à imprensa, o Ministro da Justiça disse que ainda era cedo para se estabelecer metas de redução de homicídios no Brasil. Cedo? Com taxas de mais de 50 mil homicídios a cada ano ao longo de mais de uma década?

Rogério — Vivemos a era das redes sociais – em breve haverá mais seguidores do facebook no mundo do que a população da China! A existência das redes sociais ajuda o trabalho da Anistia?

Atila — Sim, definitivamente. As redes sociais tem sido muito bem-sucedidas em levar a informação mais rapidamente e sem intermediários ao usuário final. Temos uma grande comunidade no Facebook e no Twitter que funciona também como um fórum de discussão. Para esta campanha produzimos inclusive alguns materiais exclusivos para mídias sociais nesta campanha. Os resultados foram excelentes, com muita gente compartilhando, o que fez a informação circular entre vários grupos.

Rogério — A sociedade brasileira parece mais mobilizada no pós-junho de 2013. Como “ativista” da Anistia, você sente isso de algum modo?

Atila — Temos percebido um maior engajamento, em especial da juventude, que tem estado bem presente nas ruas com demandas de diferentes espécies. Vemos como positivo esse movimento pois cidadania e direitos, em geral, não são dados e precisam ser conquistados. Uma sociedade alerta e mobilizada tem mais chances de conquistar o que deseja.

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