“As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande”
(LORDE, Audre. 2019. As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande.
In Irmã Outsider: Ensaios e Conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora)
Há quase dois anos eu chegava de volta a Santarém, trazida pelo propósito de dar aulas na Universidade Federal do Oeste do Pará, aquela mesma em que eu havia me formado, na primeira turma do curso de Antropologia, anos antes. Daqui, parti para o mestrado e depois o doutorado na Universidade de Brasília. Já falei sobre essa experiência de retorno e reencontro algumas vezes, inclusive na tese que estou prestes a defender, sobre como ela foi definidora da forma como eu me penso como docente/educadora. Foi, e tem sido ainda, decisiva na maneira como eu enxergo a necessidade de recolocar nossos referenciais, para que eles reflitam nossas realidades e nos possibilitem pautar questões e reflexões no diálogo desde a Amazônia. Reivindico a região não apenas como lugar de enunciação, mas como chão onde assentamos percepções e elaborações intelectuais e de onde nos inspiramos para desenvolver nossas pesquisas. Como pesquisadora negra da Amazônia, formada em uma universidade do REUNI, vejo esse como um dos principais legados que a democratização do acesso ao ensino superior nos possibilitou: falar a partir dos nossos centros.
Mas antes da minha geração e da geração das que agora são minhas estudantes, outras intelectuais negras da região já estavam abrindo nossos caminhos, pensando desde aqui sobre temas, elegendo eixos de pesquisa e análise que falassem sobre a realidade de onde viemos e onde estamos. Entretanto, no cenário desigual de distribuição de capital intelectual e prestígio, essas intelectuais pouco ou nunca estiveram no horizonte das minhas leituras durante meus anos de formação. Essa é uma realidade recorrente quando prestamos atenção nos programas de disciplinas que são ministrados nos mais diversos cursos de graduação, no que Sueli Carneiro chamou de epistemicídio (2006) e que se agrava quando vamos interseccionando as opressões. Pesquisadoras do/no norte do Brasil raramente são elegidas para as bibliografias.
Passei a pensar no propósito de mexer, um pouquinho que fosse nessa estrutura, usando esse lugar tão importante de docente/educadora. Foi assim que pedi para ficar responsável nesse semestre de 2020.2 da UFOPA, por uma disciplina chamada Antropologias Contra Hegemônicas. Essa é uma matéria bastante instigante, do curso de Antropologia, que abre a possibilidade de construir um programa que debata a partir de referências e epistemologias fora dos grandes eixos do norte global ou do sul do país. A proposta desse curso, então, como estamos pensando coletivamente em sala de aula, é que, refletindo sobre o lugar onde estamos nos formando, uma universidade no interior da Amazônia, nós possamos nos conectar de maneira mais direta com a produção de intelectuais da e na região. O legado de pesquisadoras negras que fazem da Amazônia seu chão, será o foco do nosso curso, com elas vamos nos apropriar daquilo que é elaborado enquanto perspectiva teórica e metodológica por nós. Na ruptura de invisibilidades interseccionais, historicamente construídas, vamos trazer essas autoras para o nosso horizonte de formação e reivindica-las como nossas referências.
Na primeira aula da disciplina, que está apenas começando, ao provocar a turma a pensar quem são as/os autoras/es que são construídos como referenciais teóricos em nossa formação, fui surpreendida por uma estudante que me respondeu: Você, professora. Aquela resposta, que por sinal me deixou profundamente emocionada, veio ao encontro do que esse semestre de Antropologias Contra Hegemônicas vem propor de debate, que a gente consiga se enxergar nas referências que nos são apresentadas na universidade. É olhando para os passos que vem de longe, como já nos ensinou Jurema Werneck, que vamos caminhar, com autoras como Zélia Amador de Deus, Marilu Campelo, Patrícia Melo Sampaio, Carla Ramos Munzanzu, Lucybeth Arruda, e muitas outras. Intelectuais negras que fazem da Amazônia seu lugar.
A epígrafe desse artigo é de um texto da intelectual afro-americana Audre Lorde. Trouxe Lorde para abrir essa conversa, porque ela nos aponta bons caminhos para pensar a reelaboração de espaços de produção intelectual que precisamos fazer a partir de nossos arsenais. É na contramão, na contra hegemonia que vamos reivindicando lugar e refundando caminhos em nossas formações, apontando para outros rumos, que centralizem não apenas nossas experiências, mas também nossas referências.