Aos que amam mulheres negras

“As mulheres negras sentem que existe pouco ou nenhum amor em suas vidas”
bell hooks

Sabemos: podem demorar anos, décadas ou talvez uma vida inteira para conseguirmos afirmar que, enfim, conhecemos o amor. Enfim, o amor se apresentou a nós, sem o peso dos balaios que carregamos por anos no caminho para a feira com passos duros; sem a violação dos nossos corpos pelos senhores de nossas vidas; sem o açoite que corta a carne  —  da pele e do coração.

Pode demorar uma vida inteira.

E pode, quem sabe, nunca acontecer.

Não é difícil ouvir de mulheres negras histórias repletas de dor e sofrimento. Histórias em que o amor passou tão rasteiro sobre os próprios olhos como uma estrela cadente  — quase ninguém vê. Um fenômeno.

O amor da sociedade patriarcal é atravessado pelo racismo, pela dominação, pelo silenciamento, pela hierarquização, pela competitividade, pela romantização da dor e das abdicações do tempo-vida. O amor revolucionário, por outro lado, tem como horizonte a nova sociedade, o socialismo, onde o trabalho seja coletivo, as desigualdades possam se esvair completamente e nem existam riquezas acumuladas. Só se constrói o novo destruindo o velho e é enquanto o velho é destruído que o novo vai emergindo das suas contradições.

Seria possível então construir um amor-amor, amor-verdade, amor-camarada, amor-revolucionário em meio a uma sociedade capitalista? Podemos afirmar que sim, com toda convicção – digo que sim com toda confiança. Essa é a tarefa dos revolucionários e revolucionárias, daquelas e daqueles que acreditam em uma nova sociedade, calcada sobre valores de companheirismo, solidariedade, confiança, camaradagem, liberdade. É um desafio diário, que exige calma e paciência, sem perder a rebeldia. Endurecer sem perder a ternura.

E aos que amam mulheres negras, há um tanto de mundo para aprender e uma estrutura para apreender. As que amam as mulheres negras e as mulheres negras que são amadas ou só conhecem o desamor, há tantos outros mundos para aprender e desaprender. E essa é a grande verdade: tudo que é aparentemente simples tem uma raíz ainda mais profunda.

A gente leva uma vida desaprendendo o que é ser mulher e, para as mulheres negras, esse ser mulher está inteiramente estruturado pelo racismo. Quando estou em relação, quando existo no mundo, existo mulher negra — no meu caso, da pele clara, importante salientar para compreender que o racismo existe se configurando de outra forma sobre o meu corpo, a minha vida e minha afetividade. É por isso que escrevo com dedos, pés, mãos, peito, alma e um corpo histórico de uma mulher negra latino-americana com sua história de vida, que é somente sua, mas que não foi circunscrita na individualidade mas em sociedade. E não está sozinha: sou uma mulher coletiva.

A você, que ama uma mulher negra, entenda quando, por mais confiante que ela pareça, desabarem também suas inseguranças. A você, que ama uma mulher negra, esteja preparado para as lágrimas porque quando o choro vem, é cachoeira. É choro de quem tem uma dor engasgada na garganta, que a gente nem sempre entende, de uma vivência anterior a nós mesmas, histórica, mas que são carregadas em nossos corpos, e a gente engole, como engoliu o açoite, como engole a farinha seca. A gente engole  —  e o gosto nem de longe é bom. A gente engole por sobrevivência, engole enquanto reúne forças, engole porque sozinha até cuspir fica difícil. Nós sangramos, nós também ficamos cansadas. A você, que ama uma mulher negra, desloque-se: pare de pensar que é tudo sobre você, que começa em você e termina em você —  centro de tudo, ser humano fálico. Compreendam que se trata de um passado maior do que a sua presença e um bom passo será dado. A vocês, que amam uma mulher negra, nunca pense que o que sabe já é o bastante e que basta saber que o racismo existe.

A vocês, que amam uma mulher negra, compreendam que ela terá que imergir nas contradições para proteger-se. Por mais que confie em você, por maior que seja o seu amor, ela usará das contradições para se proteger. Se pudéssemos escolher, não nos protegeríamos porque se pudéssemos escolher não haveria o que se proteger, mas se vivemos em um mundo de contradições é ingenuidade pensar que não nos será exigido nos protegermos de alguma forma, não é mesmo? Proteger o coração, proteger-se da solidão, do abandono, da insanidade. É duro dizer, é duro pra gente também reconhecer tudo isso, mas o presente tem um passado.

Aos que amam mulheres negras, tenham decisão. Convivemos o bastante com a indecisão: precisamos de pessoas que decidam, todos os dias, estar conosco. Ninguém nasce pronto e nem mesmo nós. Aos que amam uma mulher negra, queria dizer que tenham paciência porque nossa estrada é dura e nem sempre carregaremos a razão do mundo, só escute. Aos que amam mulheres negras, queremos que entendam o que estamos dizendo, que aprendam nossas formas de comunicar porque nosso passado é de silenciamento de dores.

Aos que amam mulheres negras, beije-a, abrace-a, assuma-a. Essa não é só uma manchete de jornal, é um ato político afetivo, é o amor tomando forma, vida e cor — literalmente. Aos que amam mulheres negras, digam a elas o quanto as amam. Aos que amam mulheres negras, aprendam a demonstrar, aprendam a olhar, aprendam a escutar, aprendam a contar também sobre vocês, sobre suas angústias e compartilhar as alegrias não só quando estão juntos. Aprendam a cuidar. Amar é uma tarefa. Sonhem conosco o futuro, lembrem os combinados e os planos. O futuro é importante para nós, ainda nos é caro. Aos que amam mulheres negras, responsabilidade — não é carga, não é peso, é responsabilidade. Aos que amam mulheres negras: não somos apenas nossa cor mas somos, antes de tudo, mulheres negras e espero que você entenda o que quero dizer com isso.

Aos homens negros que amam mulheres negras: entenda que o mundo que a cerca também é seu, proteja-se, proteja-a, protejam-se, cuidem de vocês, do amor e da relação. Deem as mãos, segurem firme. Firme. Ninguém está numa bolha, limpe a poeira. Na sociedade capitalista-patriarcal-racista, querem exterminar nossos corpos, nossos sonhos e nossas afetividades. Nossa possibilidade de amar e ser amado, profunda e verdadeiramente, todos os dias.

Aos homens brancos que amam mulheres negras: vocês levarão anos, possivelmente uma vida inteira, para conhecer, entender, respeitar e aceitar tudo que sua companheira negra traz enquanto legítimo. Comece agora, nesse exato momento. Não há tempo a perder, desacelere os passos e dê as mãos — pra caminhar junto, no mesmo passo, não pra puxar pra frente — esse é o melhor que você pode fazer. Vocês vão ajustar o ritmo se tiverem o cuidado com os passos um do outro.

Aos que amam mulheres negras: enquanto estamos reconhecendo e conhecendo nossa identidade, estamos conhecendo também o amor, o respeito, a dignidade e a esperança enquanto possibilidades. Conhecendo tudo, absolutamente tudo que nos fora negado antes de nós e em nossas vivências mesmas enquanto crescemos — negadas ao próprio direito ao sonho.

Aos que amam mulheres negras, é preciso coragem para ser revolucionário.

O trabalho na casa grande e nos engenhos nunca encheu nossa barriga, não é o amor vindo desse mesmo chão que deixará nossa alma farta.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Tudo que move é sagrado…¹

Teresa Cristina é sagrada, é sarcasmo, é poesia, é...

Sorriso amarelo e a luta antirracista OU os tamagotchis da branquitude

No dia 25 de maio de 2020, Derek Chauvin...

Que nossas palavras sejam máquina que faz fazer!

*Comunicação apresentada no II Simpósio Feminista da Universidade Federal...

Tirando a Máscara

O Brasil já é conhecido por ser um dos...

para lembrar

Nas margens do capitalismo, sentamos e choramos

O livro é de Paulo Coelho, “Nas margens do...

Miguel Otávio: não foi acidente, não foi tragédia. racismo mata!

É 2020. Estamos na primeira semana de Junho, em...

Através do Espelho: um convite para se planejar em 2025

A imersão pela palavra é um convite para olhar...

Poesia mãe África

"Herança Ancestral" Nas raízes profundas da terra brasileira,Ecoam os cantos de uma história verdadeira.Dos ancestrais que deixaram seu legado,A cultura afro-brasileira é um tesouro sagrado. "Cores...

Musas Negras: raça, gênero e classe na vida de Gilka da Costa Machado

Em 2018 assistimos ao florescer da maior campanha popular para eleição da primeira mulher negra como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL): Conceição...

Negritude velada: As irmandades de negros de Sorocaba

Um fato que salta aos olhos, de imediato, ao se debruçar sobre as esparsas – e, por vezes, desencontradas – informações sobre a Irmandade...
-+=