Apartheid sanitário que ocorre na África não é um acidente

Falta de vacinas no continente é responsabilidade tanto do Norte quanto do Sul global

FONTEPor Mathias Alencastro, da Folha de S. Paulo
Dose da vacina Covishield, da Astrazeneca, recebida via Covax por Gana (Foto: Francis Kokoroko - 24.fev.21/Reuters)

A perspectiva de melhoria regional na pandemia, com alguns países da América Latina cada vez mais próximos de conseguir vacinar mais da metade da sua população até o final do ano, escancara uma dura realidade: a África foi simplesmente deixada de fora da maior campanha de imunização da história.

Criado para assegurar uma distribuição equilibrada de imunizantes ao redor do mundo, o programa Covax sequer atingiu o objetivo mínimo de 20% de cobertura vacinal nos países africanos. Relatos de negociadores da União Africana deixam claro que os governos locais disputavam um jogo de cartas marcadas: no final de 2020, as potências ocidentais já haviam reservado todo o estoque disponível de vacinas dos próximos 12 meses.

Os resultados da diplomacia da vacina do Sul global também estão muito longe das pomposas campanhas de propaganda. Países como Egito e Marrocos adquiriram apenas 33 milhões das mais de 700 milhões de vacinas negociadas por chineses pelo mundo.

Contrariando as promessas de Moscou, o imunizante Sputnik V só chegou em pequenas quantidades a Argélia, Angola e Tunísia. As tentativas de explicações para a segregação vacinal do continente africano se referem a pressupostos sobre a pandemia que foram desmentidos com o tempo.

Com uma das pirâmides etárias mais baixas do planeta (a idade média em Angola, 17 anos, é quase metade da brasileira), a maioria dos países africanos começou informando menos mortes do que as outras regiões do mundo.

O suposto isolamento geográfico e a circulação intensa de outras patologias também ajudaram a consolidar a ideia de que a África estava “naturalmente protegida”.

O mito do excepcionalismo, que caracteriza as relações entre África e o mundo desde a era colonial, teve duas consequências dramáticas: ele deixou países africanos vulneráveis à irrupção de novas variantes mais agressivas como a delta, que está na origem de violentas terceiras ondas em Uganda, na Namíbia, e na África do Sul, onde a quantidade de novos casos aumentou dez vezes no último mês.

Em seguida, a ausência de cobertura vacinal fortaleceu as barreiras migratórias. O lançamento do certificado digital europeu confirma que as restrições sanitárias vão ter um papel central na mobilidade internacional. Se nada mudar, os cidadãos de países africanos continuarão excluídos dos circuitos econômicos por tempo indeterminado.

A saída passa pela industrialização. O governo da África do Sul deu um passo importante nessa direção no último mês ao assinar o primeiro acordo para produção de imunizantes em solo africano com a China e a França. Uma iniciativa que poderia ter sido lançada meses atrás se aliados como o Brasil tivessem apoiado Pretória nas suas inúmeras tentativas diplomáticas de democratizar o acesso às vacinas.

O apartheid sanitário que está se instalando na África não é um acidente logístico provocado pelas circunstâncias excepcionais da pandemia ou um fenômeno imputável ao subdesenvolvimento dos seus países. É o resultado da economia política da exclusão, pela qual os países do Sul, tal como os do Norte, são diretamente responsáveis.

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