Artigo analisa racismo a partir de situações vividas por líder juvenil

Um dos líderes do Movimento Novas Ideias, Marcelo Gavião, analisa as formas de racismo a partir de duas situações vividas por ele, na Colômbia e no Brasil: diferentes na forma, idênticas no conteúdo.

Quando a altivez vira falta de educação

Já não me lembro quantas vezes eu fui vítima de atos racistas. Uma delas aconteceu durante viagem à Colômbia, para participar de uma reunião da OCLAE (Organização Caribenhã e Latino Americana dos Estudantes) como representante da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES).

Na volta ao Brasil, estávamos no aeroporto de Bogotá eu, Ana Maria Prestes, diretora de Relações Internacionais da União da Juventude Socialista (UJS), e Paulo Vinicius, diretor de Relações Internacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE). Na fila para despachar a bagagem deveriam ter umas 300 pessoas. No meio de toda essa gente, fui o único a ter a bagagem revistada.

Não satisfeitos, os policias colombianos me pediram para acompanhá-los até uma sala reservada. Não me opus e fui. Chegando lá, eles revistaram novamente minha bagagem, encontrando vários livros que eu tinha acabado de ganhar da Juventude Comunista da Colômbia (Juco). A partir daí, me fizeram centenas de perguntas: Por que eu estava no país deles? O que eu fazia no Brasil para sobreviver? E, principalmente, quem tinha pago minhas passagens e minhas despesas na viagem?

Fui respondendo tudo sem medo, mas com muita raiva. Estava indignado por ser submetido àquele constrangimento. A ultima pergunta do interrogatório foi sobre eu ter comido algo nas últimas horas. Entendi o que eles queriam e falei que não tinha comido ainda, mas que estava morrendo de fome e logo que eles me liberassem, iria comer.

Foi quando o comandante deles pediu que eu tirasse a camisa e me submetesse a um exame de raio X. Queriam saber se eu estava traficando drogas no intestino. Fiz o famigerado exame e depois fui liberado, mas não sem antes verificar que um policial me seguia pelo aeroporto até a hora em que eu entrei no avião.

Chegando ao Brasil, fui direto a um posto da Polícia Federal para registrar uma queixa, denunciar e fazer um escarcéu. Não me deixaram nem registrar a ocorrência. Me disseram que era uma “atitude padrão” e que no Brasil fazia-se a mesma coisa.

Cenas como essas se repetiram algumas vezes ao longo na minha vida. Várias delas eu busquei denunciar. Adotei a postura que acho que todos deveriam ter. Não admitido ser tratado de forma preconceituosa por ninguém!

No dia 06 de maio desse ano, estava na porta do prédio onde moro a quase três anos, em Salvador, acompanhado de dois amigos. Lhes mostrava um carro que pertence a mim e a minha companheira, na tentativa de vendê-lo. Em dado momento, passou por nós uma viatura da Polícia Militar. Ela andou um pouco, parou e deu ré, retornando até onde nós nos encontrávamos.
Ao parar, o sub-tenente olha pra mim e pergunta: Algum problema aí? Percebendo a desconfiança do policial, respondi: Bom dia policial! Não há problema algum, o carro está quebrado e é meu. Foi o suficiente para que ele descesse da viatura e pedisse meus documentos e o documento do carro. Tudo isso com um tom de voz alterado, me acusando de não ter sido educado com ele.

Perguntou onde eu morava e lhe respondi que era ali no prédio a nossa frente. Me fez subir ao meu apartamento duas vezes. Uma para pegar meu documento e outra para pegar um documento de identidade de minha companheira, já que, segundo ele insinuou, eu poderia ter roubado o carro.

Durante todo o tempo eu me mantive sereno e firme. Tomei o cuidado de não ser acusado de desacato à autoridade, mas também mantive minha altivez. Na segunda vez em que estive no apartamento, aproveitei para ligar para um amigo bastante influente e pedi que o mesmo fizesse contato com a Secretaria de Segurança Pública e denunciasse o que considerei abuso de autoridade.

Vendo que não havia nada de errado, nem no meu documento nem no da minha esposa, o policial me disse que o carro estava apreendido por conta da minha “falta de educação” e que procuraria falhas no carro que justificasse sua apreensão.

Daí, perguntei como ele iria apreender um carro que estava parado na porta de minha casa. E ele me respondeu que todo o problema foi a minha falta se educação. Que eu não estava com o documento de 2014 nas mãos e que o veículo estava apreendido. Foi quando um dos agentes que estava junto intercedeu e solicitou que conversássemos nos sentido de desfazer o mal-entendido.

Depois de uma conversa, eles me devolveram os documentos e foram embora. Logo após o fato, fiquei me sentindo mal. Afinal, sabia que o pano de fundo do problema em questão era, primeiro o fato de três homens negros estarem entorno de um carro e, segundo, a forma altiva como eu me reportei à autoridade policial.

Isso ocorre várias vezes, todos os dias. Não quero julgar se os agentes tinham ou não consciência do ato que praticavam, mas, independente disso, ações como essas precisam ser combatidas.

Tenho orgulho de ser negro e de trabalhar desde os 14 anos de idade. Sou filho de um negro operário aposentado e de uma dona de casa. Procuro quitar minhas contas em dia e pago todos os meus impostos. Fui o primeiro de cinco filhos a entrar na universidade.

Não admito o preconceito, seja ele consciente ou inconsciente. Se para alguns, altivez soa como falta de educação, então que sejamos todos mal-educados.

Marcelo Gavião – Movimento Novas Ideias

 

 

Fonte: Simões Filho

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