As mentiras criadas sobre o feminismo

Nunca foi tão difícil começar uma matéria. Escrever o nome do arquivo ([Matéria Lado M] Falácias Feministas) me deu um certo arrepio. Falar sobre um movimento tão diverso não é fácil e fugir da armadilha de criar uma “cartilha” sobre o que é ser feminista é uma luta constante. Mas, mesmo assim, venho aqui, com o meu medo numa mão e minha vontade de entender melhor o movimento feminista em outra, falar sobre mentiras. Sobre as mentiras criadas para desmoralizar esse movimento que, como constatou Malala Yousafzai nos últimos dias, é “somente” sobre igualdade.

Por Natália Belizario, do Lado M

 

Reprodução/ Lado M

Malala, assim como eu, teve medo. A menina baleada pelo talibã, que enfrentou meses de internação em um hospital num país até então desconhecido, teve medo de se declarar feminista. Malala disse ter mudado de ideia após ouvir o discurso de Emma Watson na ONU sobre a campanha #HeForShe, que tem a intenção de recrutar homens para a luta pela igualdade entre gêneros. Em seu ovacionado discurso, Emma fala sobre como a palavra “feminismo”, de maneira equivocada, torna-se sinônimo de “ódio aos homens” e, consequentemente, afasta as pessoas do movimento. Essas impressões equivocadas surgem, se multiplicam e se perpetuam corroboradas por falácias, e as feministas, além de lutar diariamente por um mundo menos machista e mais igualitário, têm que se desvencilhar desses obstáculos que as impedem de alcançar tanto homens, quanto o seu principal alvo: as próprias mulheres.

Batom Vermelho?

Bianca Cardoso, do Blogueiras Feministas, relatou que a página recebe mensagens de meninas com dúvidas sobre “ser feminista”. Desde o começo da entrevista, a blogueira deixou claro que o objetivo do site não é instituir uma cartilha feminista, mas que existem dúvidas que podem ser respondidas sem cair nessa armadilha. “Aparecem coisas do tipo ‘eu posso usar batom vermelho e ser feminista?’ ou ‘eu posso usar maquiagem e ser feminista?’ e a gente diz que não tem nada a ver” – ressalta Bianca, que afirma que a crítica do feminismo é muito maior do que isso.

Não existe uma definição absoluta para o que é o movimento feminista, mas Djamila Ribeiro, colunista da Carta Capital, conseguiu definir bem o objetivo maior dessa luta – “Não estamos querendo criar um outro tipo de imposição, estamos questionando justamente essas imposições e essas pressões em cima da mulher”. A questão não é, portanto, poder ou não poder usar o batom vermelho, é usar o batom vermelho (uma mera figura para representar tudo aquilo que envolve padrões de beleza) porque quer, não por ser obrigada. Porque se tem uma coisa que nós não somos, é obrigadas, não?

“Moça, não sou obrigada a ser feminista”

A página que deu nome a esse subtópico tem cerca de 100 mil likes e reproduz diariamente um discurso de ódio contra o movimento feminista. As postagens vão desde imagens do tipo “Mulher feminista x Mulher conservadora” até declarações sobre como o feminismo é uma luta por privilégios, não por igualdade. E claro, argumentações sobre como o feminismo é o oposto extremo do machismo. Não, o feminismo, como bem disse Djamila, não é um outro tipo de imposição.

Essa luta por igualdade entre gêneros é protagonizada por mulheres e, de maneira geral, não prega ódio aos homens. É compreensível que algumas mulheres, por conta da violência diária – fruto do machismo – a qual são submetidas, tenham aversão a homens, mas isso não surge como um discurso de empoderamento feminino. Por conta dessa falsa dicotomia – feminismo x machismo – páginas como “Moça, não sou obrigada a ser feminista” encontram espaço para propagar um discurso sem fundamento. Novamente, o feminismo não é um sistema de opressão e não busca alcançar privilégios para mulheres, mas sim desconstruir desigualdades entre gêneros, que prejudicam ambos de maneiras diversas. Um homem não ganhará menos por conta do feminismo, um homem não será impedido, nem obrigado a exercer uma função  por conta do feminismo, um homem não sofrerá violência por conta do feminismo. Logo, num sentido prático, nem mesmo a misandria se sustenta, já que não existe um sistema que a englobe.

Outra página polêmica do Facebook é a “Moça, você é machista”. As opiniões quanto à afirmação do nome da página são bem diversas. Nascidas e criadas num mundo machista, naturalmente existem mulheres que reproduzem discursos que se inserem nesse contexto. Contudo, é problemático afirmar que uma mulher é machista, assim como é problemático afirmar que um negro é racista. O racismo inverso e o feminismo inverso NÃO existem, os oprimidos por esse sistema tendem, por motivos óbvios, reproduzir discursos e ações que ferem a eles própiros. Uma mulher que, por exemplo, diz que outra “mereceu” ser assediada por conta de suas roupas, não enxerga como o seu discurso é corroborado por um sistema de opressão que em algum momento pode vitimá-la. Portanto, é muito mais coerente problematizar a reprodução de discursos machistas por mulheres, do que criar um rótulo que, muitas vezes, cria uma aversão do feminismo. É necessário um espaço aberto para problematizações e diálogos, já que ser feminista é uma (des)contrução diária.

(Des)contruções do Feminismo

Uma das mentiras mais cruéis criadas sobre o feminismo está relacionada à questão da maternidade. Djamila refuta essa falácia de maneira certeira: “O que a gente tá questionando é essa maternidade como destino, queremos que a maternidade possa ser uma escolha para a mulher. Numa sociedade que impõe isso às mulheres, a maternidade não é uma escolha. O feminismo critica a imposição da maternidade e não a escolha da maternidade.”.

Além de problematizar essa imposição da gravidez, o feminismo questiona a construção social em torno da palavra “maternidade”. Biologicamente nós mulheres somos diferentes dos homens e, por conta disso, após a fecundação é em nosso corpo que se desenvolve uma nova vida, não no corpo masculino. Após o nascimento, pai e mãe têm exatamente a mesma capacidade e responsabilidade sobre o cuidado do filho. Djamila aponta em seu artigo Para além da biologia: Beauvoir e a refutação do sexismo biológico como essa diferença biológica serve como fundamento para a construção de uma diferença no papel social, que prejudica ambos os gêneros. Termos como “amor de mãe”, por exemplo, diminuem da maneira injusta a relação afetiva entre pais e filhos, eventualmente criando barreiras para demonstração de carinho, uma vez que a “função” masculina para com os filhos é prover recursos, proteger e impor autoridade. Nesse ponto, fica muito claro como a desconstrução do feminismo não busca privilegiar mulheres, mas colocar ambos os gêneros em pé de igualdade, criando uma condição mais justa em diversas esferas.

 

Logo, a luta do feminismo pela regulamentação do aborto está diretamente relacionada ao questionamento da “maternidade como destino”. Não existe uma apologia ao aborto e, acreditem, nenhuma mulher gosta de abortar. Essa última constatação pode parecer óbvia, mas muitos ainda acreditam que a regulamentação do aborto causaria um surto de mulheres procurando esse método por motivos banais, atentando contra “uma vida”. O texto de Iara Paiva, para o Blogueiras Feministas, não poderia ilustrar de maneira mais sensível como se dá a problematização do aborto para feministas (para ler, prepare-se: se você ainda continua acreditando nas falácias até então descritas, o choque poder ser grande).

O feminismo não é, portanto e de uma vez por todas, um novo sistema de opressão. Não existe motivo para ter medo de se declarar “feminista”, leitora. Não existe uma feminista perfeita, não existe uma feminista imperfeita, uma vez que não existe um modelo para fazer parte desse movimento tão diverso. Mães, mulheres sem filhos, casadas, solteiras, divorciadas, com pelo, depiladas, loiras, morenas, negras, maquiadas, de cara lavada… o feminismo está aqui para agregar e mostrar que juntas somos sempre mais fortes, independente das mentiras criadas para desmoralizar essa luta que é “apenas” sobre igualdade (e não me canso de repetir isso).

Sobre a Autora

Estudante de jornalismo e feminista. Gosta de ver o mesmo filme algumas mil vezes e captar uma essência diferente em cada uma delas. Ama Pearl Jam, detesta mentiras e sonha em viajar pelo mundo fazendo algum trabalho voluntário.

 

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