As voltas que o mundo dá

Tribunal encenado inocenta Tiradentes no 21 de abril. História reescrita remete ao mito de Exu, orixá que reinventa a memória

Por Flávia Oliveira, do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Reescrever a História foi a sentença que Francisco Bosco, presidente da Funarte, usou para definir o simbolismo do “Desenforcamento do Tiradentes — Justiça ainda que tardia”. A encenação com atores e personalidades da vida real ocupou o velho Palácio da Justiça, no Centro do Rio, na tarde nublada de um feriado que, ao homenagear o alferes, reverencia a luta dos brasileiros pela liberdade, contra a opressão do Estado, viva ainda hoje. Duzentos e vinte e três anos depois de morrer por enforcamento e, na sequência, ter o corpo esquartejado e exposto em vias públicas, Joaquim José da Silva Xavier foi, de novo, julgado e, agora, inocentado da acusação de lesa-majestade. Na mitologia iorubá, o episódio remete ao orixá Exu, aquele que é capaz de reinventar a memória, reinterpretar o passado, subverter o tempo.

Itã é o termo que designa os relatos míticos da tradição iorubá. Renato Noguera, doutor em Filosofia, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, apresentou, em curso recente na Casa do Saber O GLOBO, o itã que bagunça a compreensão convencional do tempo: “Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje”. Divindade que simboliza o movimento, Exu é retratado na mitologia como o último orixá e o primeiro humano. Está encarregado de levar pedidos e oferendas às divindades do orum (o “céu” iorubá) e trazer dádivas e punições aos aiê (o mundo físico).

Exu é mensageiro, porta-voz, intérprete, ensina a “Enciclopédia brasileira da diáspora africana”, de Nei Lopes. Noguera completa: “É o orixá que abre caminho para o acontecimento. Na mitologia, quando joga a pedra por trás do ombro e mata o pássaro no dia anterior, Exu reinventa o passado. Ensina que as coisas podem ser reinauguradas a qualquer momento”.

Foi assim com Tiradentes. No início de tarde do 21 de abril, centenas de cariocas se aglomeraram no quarteirão da Justiça, em busca de um ingresso para testemunhar a redenção do mártir. Milton Gonçalves encarnou o herói da Inconfidência Mineira, eternizado no imaginário brasileiro como um homem branco, de longos cabelos e barba, túnica branca, corda no pescoço. O que Joel Rufino, idealizador da dramatização, quis enfatizar com a escolha do protagonista é que a luta pela liberdade cabe em qualquer rosto: “Poderia ter sido uma mulher, foi um ator negro. Tiradentes pode ser qualquer um, ou todos nós”.

Ao fim de duas horas de julgamento, o alferes foi inocentado do crime de lesa-majestade, a traição à pátria daqueles tempos. A culpa que assumiu foi desejar um governo escolhido pelos cidadãos e voltado para o bem-estar geral. “Para salvar meu povo, os brasileiros, que trabalham e têm seu trabalho confiscado por uma realeza que vive distante. Uma realeza que não se envergonha de tirar de quem não tem para aumentar sua riqueza. Se dez vidas eu tivesse, dez vidas daria para salvá-los”, recitou o emocionado, e finalmente livre, Tiradentes de Milton.

O mito de Exu, igualmente, há de ser revisitado. Pelo papel de agente punitivo, pelo caráter amoral, pela representação fálica que remete ao vigor da criação, o orixá foi associado ao diabo dos cristãos. Reside nessa incompreensão muito da intolerância e do preconceito sofridos pelas religiões de matriz africana até os dias de hoje. Como Tiradentes foi desenforcado ontem, há de chegar o dia de “dessatanizar” Exu, a força que reinventa o tempo. E faz a roda girar.

 

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