Rapper critica a censura e o ‘movimento orquestrado’ dos haters, mas elogia a luta das mulheres contra o assédio sexual
Por Ângela Faria Do Uai
(foto: Klauss Mitteldorf/Divulgação)
“Vai ser um showzaço. Música negra de ‘a’ a ‘z’”, avisa Mano Brown, ao comentar o projeto inédito dele e Criolo que estreará no Festival Planeta Brasil, em BH, no próximo sábado (27). Nomes emblemáticos de duas gerações do rap nacional, os dois preparam surpresas. “Só vai ver quem estiver lá”, diz Brown, brincando que o repertório é “quase segredo de Estado”. A dupla estará acompanhada de banda. Duas inéditas de Brown compostas com o soulman Lino Krizz – Rosa e Cego e só – estão garantidas. Os experientes produtores Daniel Ganjaman e Duani assinam a direção musical.
Brown não entrega o jogo. Espera-se, inclusive, a primeira parceria dele com Criolo, embora o rapper negue essa dobradinha autoral. Porém, admite: se tudo der certo, há possibilidade de a dupla seguir adiante em outras apresentações. “Poderia ser”, deixa escapar a respeito de turnê e disco. “Não conversamos sobre isso”, despista.
“O veneno vem na sopa, não no anúncio”, diz Brown, de 47 anos, a respeito do projeto com Criolo, de 40. O repertório de sábado terá como base influências que marcaram o trabalho de ambos. Será um show sintonizado com o momento político do Brasil, afirma. Em Boogie naipe, seu recente trabalho solo, ele mesclou rap, R&B e soul em canções com pegada romântica. Deixou a zona de conforto, surpreendeu fãs e promoveu bailes black por onde passou. No disco Espiral de ilusão (2017), Criolo também foi bem-sucedido ao trocar o rap pelo samba, cantando amores e desamores. Neste momento de proliferação de ódio e intolerância, o recado da dupla não deixa de ser político.
“Todas as minhas músicas são políticas. Nunca escondi meu pensamento. Minhas letras falam o que penso”, diz o rapper do Racionais. Brown e Criolo vieram a público protestar contra o impeachment de Dilma Rousseff e participaram de manifestações pró-diretas já. Mano Brown diz que o Brasil, hoje, é governado pelo medo: “As pessoas se isolam dentro de casa, passam o cadeado, só querem saber de internet”. Isso ocorre tanto nas periferias quanto nos bairros ricos, observa.
“A tendência do pobre é entregar a vida na mão do dono da casa-grande, como sempre aconteceu. Grande parte da massa jogou pro alto, não quer se envolver, não acredita no político, porque vê todo mundo roubando. Nem sabe mais o que é governo militar. O Brasil é um país proporcionalmente jovem. A maioria não sabe o que é uma ditadura, a mão de aço, morô?”, comenta.
Para Brown, a cultura do medo pode levar “o povão a chamar o Exército”. E um candidato como Fernando Collor de Mello tem chances de se eleger. “No jogo político do Brasil, todo mundo se sujou, todos – esquerda e direita – são parecidos. O povo está no meio do tiroteio, acreditando em meias verdades, calúnias. Com medo, quer a sua segurança em primeiro lugar, não quer perder o que conquistou. Isso vale para preto, branco, periferia, patrão. Todos unidos pelo medo”, reitera. Defensor do governo Lula, que, segundo ele, ofereceu oportunidades de ascensão a jovens negros e à população pobre, Brown lamenta a interrupção – com o apoio popular – desse ciclo da história brasileira.
“Convivo na rua, nas quebradas. O povo brasileiro se tornou moralista”, lamenta Brown. “Vai dizer que é a direita que está pressionando? Não. Não é isso. O povo pensa como eles (os conservadores). Se a eleição fosse hoje, ele votaria em quem pensa dessa forma”, diz. O rapper afirma que a mídia “manipula informações”, mas pondera que a população escolheu “virar as costas para Dilma Rousseff”.
CENSURA Esse contexto, destaca, favorece movimentos que exigem a volta da censura, influenciados por bancadas religiosas. Ao comentar a retirada do funk de MC Diguinho do Spotify sob a alegação de que a letra faz apologia do estupro, Mano Brown diz desconfiar de imposições sobre o que pode ou não ser cantado.
“Censura quem faz é você, na sua casa, educando o filho e a filha. Explicando as coisas pra eles, porque o mundo vai oferecer de tudo pros filhos da gente. É muito perigoso falar que tem de censurar um tipo de arte. Isso não condiz com a minha caminhada. Minha vida sempre foi antipadrão. Não sou moralista, não tenho a pretensão (de impor regras). Isso tem de partir do artista”, afirma.
Brown conta que foi duramente questionado por amigos, na periferia paulistana, ao se posicionar contra a censura. “Onde já se viu cara pelado no museu e mãe com criança ali?”, ouviu, ao defender a liberdade de expressão. Ele se refere à performance La bête, no Museu de Arte Moderna (MAM), em que uma menina, acompanhada pela mãe, interagiu com o artista nu. “A massa está pensando assim”, constata, chamando a atenção para a intolerância disseminada nas redes sociais.
GATO Brown e Chico Buarque viraram alvo de ataques em suas próprias páginas devido ao posicionamento político que adotaram. Recentemente, o rapper foi ridicularizado nas redes ao acionar, por engano, um filtro de aplicativo e surgir com máscara de gato sobre o rosto durante transmissão no Instagram. No início, reagiu com esportiva à “zoação” dos internautas. Porém, diz que, logo depois, detectou “um movimento orquestrado”. Isso ocorreu depois de ele postar uma foto abraçado ao ex-presidente Lula e a Chico Buarque em evento do MST realizado em São Paulo. Os ataques se estenderam ao post em que Brown aparece com a filha, na época do Natal.
“Fizeram pra me desmoralizar. Começou como brincadeira, mas depois vieram os haters. Num país em que político leva dinheiro na cueca, o pessoal vai prestar atenção no meme de gato? Este país nesta crise toda… O Brasil tá sem assunto, sem o que fazer. Não sei se sou uma pessoa tão interessante, não entendi por que tanta força pra cima de mim”, comenta. Brown lamenta o fato de a “campanha orquestrada” roubar o espaço do clipe Natal no gueto, dirigido por Katia Lund e João Wainer, lançado por ele no fim de dezembro para homenagear as periferias.
“Ficou claro. Pensaram assim: vamos desmoralizar, vamos tirar a credibilidade dele depois daquela foto com o Lula”, desabafa. Mas a vida segue. “Passei por ali fumando, cantando com meus amigos. Vou moscar na brisa dos outros? Tô na minha. Não vou seguir a vida dos outros”, diz.
MACHISMO Com 30 anos de rap (Racionais completa três décadas de carreira em 2018), Mano Brown avisa: “A luta continua. Estamos em tempos de guerra”. Porém, ele não vê só retrocesso no Brasil. O rapper comemora o avanço das mulheres, inclusive no universo do hip-hop. Ele próprio já pediu perdão, publicamente, por letras machistas que escreveu quando jovem.
Essas canções foram expurgadas definitivamente do repertório do grupo. Pai da feminista Domenica, de 17 anos, e marido da produtora e advogada Eliane Dias, aguerrida militante dos direitos humanos, o rapper apoia a mobilização contra o abuso sexual. “O momento é das mulheres. Elas não têm que aceitar assédio, ganhar salário menor, serem usadas só porque o sujeito paga salário pra elas. A mulher está conquistando e o homem está se enxergando, percebendo que é só uma parte do sistema – ele não é o sistema. Mulher tem que se impor mesmo”, aplaude.
Brown apoia a manifestação de Oprah Winfrey na entrega do Globo de Ouro, este mês, nos EUA. E adverte: “Os homens têm a obrigação de tomar o partido das mulheres”. Diz que gostaria de dividir parcerias com elas. Cita Iza, Karol Conká e Karol de Souza como artistas que admira. Gostaria de compor também com Ludmilla. “Todas são protagonistas do barato. Isso é reflexo das conquistas da mulher”, conclui.
FESTIVAL PLANETA BRASIL
Sábado (27), a partir das 12h. Com Mano Brown & Criolo, O Rappa, Phoenix, Soja, Anavitória, Gabriel, o Pensador, Iza, Oriente, FTampa e Graveola e O Lixo Polifônico, entre outros. Esplanada do Mineirão. Ingressos a partir de R$ 130. Vendas: www.sympla.com/planetabrasil/. Informações: www.festivalplanetabrasil.com.br