Fonte: Estado de São Paulo –
Na periferia do município de Votorantim, comunidade reivindica área urbana de três mil hectares
No casebre de tábuas roídas pelos cupins, espremido entre um barranco e a linha de trens da antiga Estrada de Ferro Votorantim, o sucateiro Paulo Fernandes, de 58 anos, sonha alto. Vê o dia em que a comunidade dos Camargos – exatas 57 pessoas, incluídas as crianças, que hoje se apinham em 18 barracos no local conhecido como Favelinha, na periferia de Votorantim, a 108 km de São Paulo – terá de volta os três mil hectares de terras que teriam pertencido a seus antepassados. Embora brancos em sua maioria, eles se dizem descendentes de escravos.
“Metade da cidade está em nossas terras”, diz Fernandes, ex-presidente da Associação dos Moradores da Comunidade Quilombola dos Camargos. “Mas ainda falta o reconhecimento”, pondera.
Camargos é uma de quase 20 comunidades paulistas que reivindicam a condição de remanescentes de quilombos, o que, de imediato, lhes asseguraria o direito às terras que ocupam ou ocupavam – algo em torno de 40 mil hectares. A esse número, se somam 24 comunidades já reconhecidas como quilombolas no Estado de São Paulo e que ocupam ou reivindicam mais 60 mil hectares. Embora apenas seis tenham conseguido, até agora, a definição de seu território e a titulação das terras, o número de candidatos só aumenta.
A cada ano, no Estado, pelo menos três novas solicitações batem às portas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). É o caso de uma comunidade situada em Pirituba, na zona oeste de São Paulo, que pleiteia ser o primeiro quilombo urbano da capital. Ali teria existido uma comunidade de escravos fugidos da Marquesa de Santos.
Para o reconhecimento, é preciso comprovar que são comunidades povoadas por descendentes diretos de escravos, que se constituíram a partir de processos como fugas, heranças, doações e recebimento de terras como pagamento por serviços prestados ao Estado. Em alguns casos se admite a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior de grandes propriedades, além da sua compra durante o sistema escravocrata, ou após a abolição.
Para a coordenadora do Movimento Quilombola em São Paulo, Regina Pereira, o artigo da Constituição que reconhece o direito dos remanescentes não estabelece um limite para o reconhecimento. “Há muitas comunidades que têm o direito e sequer foram identificadas.”
O núcleo dos Camargos só se deu conta de sua condição de quilombola recentemente. “Ficamos sabendo pelo pessoal do Itesp”, diz Fernandez. Antes, a comunidade tinha conhecimento de uma possível herança deixada por um antepassado, o fazendeiro José Joaquim de Camargo. Eles exibem uma escritura, segundo a qual o fazendeiro teria adquirido uma porção de terras do capitão Jesuíno de Cerqueira Cezar em 1874.
Pelo documento, as terras se estendem até Salto de Pirapora, município vizinho. O fazendeiro teria tido filhos com escravas e gerado a possível descendência quilombola. “Somos herdeiros ricos e vivemos nessa miséria”, reclama Amaro Fernandes Neto, diretor de patrimônio da associação.
Desde que reivindicaram o reconhecimento como quilombolas, os moradores se ocupam de impedir que aumente a ocupação do que consideram um futuro quilombo. Recentemente, a prefeitura iniciou a terraplenagem para construir uma escola no Votocel, bairro vizinho. “Fomos lá, mostramos o estatuto da associação e mandamos parar o serviço”, disse Amaro.
Os barracos não têm água, nem esgoto e a energia, cedida pela Votorantim, chega apenas à noite. A ferrovia, que ficou desativada alguns anos, voltou a operar em 2007 no transporte de minério. “A gente se acostumou com o barulho, mas o perigo são as crianças”, diz Amaro.
POLÊMICA
Ele conta que o grupo, que sobrevive da coleta de sucata, é discriminado. “Não dão emprego para as pessoas daqui.” Moradores antigos da cidade não acreditam que o local tenha sido um quilombo. De acordo com Joel Ramos, de 86 anos, ali era parte de uma fazenda adquirida pelo grupo Votorantim. “Os Camargos eram descendentes de um fazendeiro e sempre foram brancos.”
O ex-presidente da associação contesta. “Meu pai morou aqui mais de 80 anos e falava da avó escrava.” O diretor executivo do Itesp, Gustavo Ungaro, afirma que o governo estadual tem sido cuidadoso no reconhecimento das remanescentes, o que explicaria o pequeno número de comunidades quilombolas com terras tituladas. “É um processo consistente, com base em relatório técnico e científico produzido por antropólogos.”
Os cuidados são tomados para evitar que se use a condição de quilombola para obter terras. “A origem têm de estar ligada à resistência à escravidão.” Ungaro lembra que, em São Paulo, o título dominial vai para uma associação e a venda da terra é proibida.
No início do mês, o governo reconheceu mais duas comunidades no Estado, ambas em Barra do Turvo, no Vale do Ribeira. O possível reconhecimento do núcleo dos Camargos, diz Ungaro, caberá ao Incra, pois as terras são particulares.
Matéria original: Aumenta em São Paulo número de candidatos a quilombolas