Autores mineiros marcam protagonismo negro nesta edição da Flip

15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) presta homenagem a Lima Barreto. Cinco mineiros discutem as variações e influências da matriz africana na literatura

Por Márcia Maria Cruz, do UAI

A escrita da dramaturga Grace Passô extrapola fronteiras (foto: Lucas Ávila/ Divulgação)

Paraty se transforma na capital brasileira da palavra entre os dias 26 e 30 de julho, ao receber escritores do Brasil e do mundo na 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Neste ano, em que a maior festa literária do país homenageia o escritor Lima Barreto (1881-1922), haverá uma comitiva de autores mineiros aportando por lá: Grace Passô, Ricardo Aleixo e Conceição Evaristo, todos belo-horizontinos, e Edimilson Pereira de Almeida, de Juiz de Fora, e Ana Maria Gonçalves, de Ibiá.

Com diferentes abordagens e linguagens – da poesia à dramaturgia, passando pelo romance –, os autores mineiros criaram trabalhos que os colocam em diálogo, mesmo que não intencional, com a obra de Lima Barreto, romancista extraordinário que tanto escreveu sobre as diferenças sociais brasileiras no início do século 20. “À maneira dos lençóis d’água subterrâneos (indispensáveis para que os rios possam fluir à superfície), as epistemologias afrodiaspóricas em Minas têm se desdobrado em teias criativas consideráveis”, afirma o poeta, ensaísta e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora Edimilson de Almeida Pereira.

Neste ano, o programa principal da Flip ocupará o entorno da histórica Praça da Matriz, onde ocorrerão os encontros desses mineiros. Um do mais esperados é a mesa prevista para domingo (30), às 12h, no Auditório da Matriz, que reunirá Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, autora do romance Um defeito de cor (Record, 2006).

Conceição Evaristo: resgate da história negligenciada pela historiografia oficial (foto: Richner Allan/Divulgação)

Tanto Conceição como Ana Maria fazem importante trabalho de resgate da história negligenciada pela historiografia oficial, que dá pouco espaço ao protagonismo negro. Em Ponciá Vicêncio (Editora Malê), livro de estreia, Conceição nos conduz, por meio da história de vida da personagem Ponciá, pelas experiências num período pós-abolição. Conceição se tornou um dos principais nomes da literatura brasileira, explorando ainda o território feminino. Nesse sentido, Conceição dá sequência à tradição iniciada por Maria Carolina de Jesus (1914-1977), autora de Quarto de despejo (1960).

Aos 70 anos, Conceição Evaristo consolida a forma de escrita que funde as vivências aos exercícios de linguagem, o que ela denomina de “escrevivência”. Nascida na favela do Pendura Saia, no alto da Avenida Afonso Pena, Conceição foi cercada por mulheres da comunidade que ganham vida em suas narrativas, analisadas na coletânea Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (Editora Idea, 2016).

Para Edimilson, o evento em Paraty possibilitará o “encontro de algumas fibras dessa teia”. “Além de nos lançarmos em direção à síntese de alguma experiência artística, é fundamental expandir a vontade para experimentar as múltiplas percepções do próprio fazer artístico.” Edimilson participa da mesa “Arqueologia de um autor”, na quinta-feira (27), ao lado de Beatriz Resende e Felipe Botelho Corrêa. Sobre esse deslocamento, Edimilson explica que as relações entre passado e presente, ancestralidade e contemporaneidade se resolvem através de linguagens tensionadas, ávidas pela crítica e autocrítica, pelo silêncio e o grito, pela solidão e a partilha.

Ricardo Aleixo lança o livro Antiboi no evento (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Embora as vivências de ser negro inevitavelmente atravessem a escrita desses autores, eles ultrapassam o rótulo de uma literatura negra. “O que busco fazer em poesia aponta para um certo modo de me relacionar com a palavra, não com o fato de eu, como ‘negro que escreve’, sentir-me na obrigação de tratar apenas de temas que dizem respeito ao cotidiano da gente negra. Se o faço é porque vejo”, afirma Ricardo Aleixo. Para o poeta, ao abordar a questão racial existe a possibilidade “não apenas de fazer a crítica do racismo estrutural e estruturante, mas também de enunciar outros modos de nos colocarmos diante desse grande mistério que é a linguagem”. No dia 26, Ricardo lança o livro Antiboi (Crisálida, 2017) na Flip. Em Belo Horizonte, o lançamento será no próximo dia 22, às 16h, na Livraria Crisálida (Rua da Bahia, 1.148, Centro).

Na mesma direção de experimentação de linguagem, a atriz e dramaturga Grace Passô extrapola fronteiras em sua escrita, como se pode ver no seu último espetáculo, Vaga carne. Na avaliação de Ricardo, ele e Grace partem de concepções, metodologias e técnicas distintas. No entanto, têm em comum o uso livre da voz, do corpo, da palavra para criar “territórios expandidos” bem ali, diante dos espectadores. “Grace Passô é aquela com quem mais me identifico, em termos processuais, uma vez que ela, com a pesquisa que resultou em seu maravilhoso Vaga carne, aproximou-se bastante do universo no qual eu me movo já desde o início da década de 1990, quanto à utilização da voz e do corpo como elementos composicionais”, diz.

Autor com a cara do Brasil

Lima Barreto morreu aos 41 anos, mas, apesar da pouca idade deixou obra extensa entre romances, crônicas e contos. A sessão de abertura, no dia 26, às 19h15, se dedicará ao romancista na mesa “Lima Barreto – Triste visionário”, mesmo título da biografia recém-lançada pela escritora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Ela debate a vida e a obra do carioca com o ator Lázaro Ramos, que acaba de lançar o livro Na minha pele (Objetiva, 2017), e o diretor de teatro e cinema Felipe Hirsch. “Afrodescendente por origem, opção e forma literária, Lima Barreto combateu todas as formas de racismo, aqui e nos Estados Unidos – país que costumava hostilizar em seus escritos, pois julgava que por lá seus ‘irmãos de cor’ eram tratados muito mal –, e desenhou seus personagens com particular ternura”, escreve Lilia.

Lilia é uma das maiores especialistas no autor e organizou a edição de Contos completos de Lima Barreto (Cia. das Letras, 2010), que reúne 149 contos do autor, resgatados por meio de pesquisas em manuscritos, edições originais, jornais e revistas da época.

O poeta e professor Edimilson de Almeida Pereira destaca na obra de Lima Barreto, para além dos temas sociais abordados, o dilema de certa matriz de escrita. “É metalinguística e, ciente de seus abismos, e por causa deles, nos instiga a reinventar a própria literatura”, diz. “Penso essa escrita como literatura negra ou afro-brasileira e como literatura brasileira, mas também como a rasura desses perfis e a provocação para a instauração de outra perspectiva tensionada de pensar-escrever o que deixamos de ser quando, justamente, nos afirmamos ser dessa ou daquela maneira”, reflete o professor.

Na avaliação de Edimilson, ler Lima Barreto é estação obrigatória para quem aprecia a literatura e pretende conhecer a formação da sociedade brasileira. “A obra traz a crítica aos sistemas de privilégios e ao preconceito racial, aspectos inerentes de nossa lógica social, que restringe os horizontes do indivíduos de descendência negra e indígena, das mulheres e das pessoas mais pobres.”

Ricardo Aleixo acredita que a homenagem amplia a visibilidade desse grande autor. “Lima Barreto é imenso, bem maior do que a homenagem prestada a ele pela Flip nos faz imaginar. A Flip, é certo, ajudará a revelar ao pequeno grupo de brasileiros e brasileiras capazes de ler e entender o que leem um pouco da grandeza desse nosso escritor ainda tão pouco conhecido”, conclui.

Edimilson Pereira de Almeida aponta para uma epistemologia afrodiaspórica (foto: Arquivo pessoal)

15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)
De 26 a 30 de julho. Ingressos: R$ 55 (inteira) e R$ 27,50 (meia) por mesa.
Vendas até 25 de julho no site da Flip

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