Biografia de Sueli Carneiro é sopro de mudanças

Na coluna de junho, Jurema Werneck fala sobre raiva e desapontamento, reflexo da negligência da incompetência daqueles que têm o dever de agir por meio de políticas públicas e como a obra será combustível para seguirmos lutando por saúde

Maio foi um mês que começou contraditório, com marcas de vida e de morte, de raiva e desapontamento. Logo em seus primeiros dias, tinham ido embora, perdidos para sempre, mais de 410 mil dos nossos e das nossas para a covid-19. Fomos também impactados pela tragédia em Saudades (SC), onde criancinhas de pouco mais de 1 ano foram mortas esfaqueadas, junto a duas de suas professoras, por um jovem de 18 anos. No Rio de Janeiro, uma incursão policial descontrolada (para dizer o mínimo) na favela do Jacarezinho deixou 28 mortos, a maioria jovens negros e pobres, e uma legião de pessoas traumatizadas. E ainda, depois de 53 dias de internação, um dos maiores comediantes do país morreu de covid-19, e parecia que o sorriso morria com ele. 

Em minha cabeça, plena das vozes de mulheres negras, o que reverberava era a voz de um homem branco: Carlos Drumond de Andrade. No poema “Mário de Andrade Desce aos Infernos”, está dito: “(…) No chão me deito à maneira dos desesperados. / Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio, esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho, preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se, mas preciso, preciso, preciso (…)”. Tantas dores e perdas a voz do poeta embalou…

Nossas medidas ainda estão partidas. Os números não dizem nada das histórias das vidas perdidas e que não conseguimos mais narrar. São Paulos, Marias, Anas, Franciscos que poderiam ainda estar entre nós. A raiva e o desapontamento que sinto é reflexo da negligência e da incompetência daqueles que têm o dever de agir por meio de políticas públicas para garantir o direito básico à vida e à saúde. Eles são os responsáveis por essas perdas e dores que parecem não ter fim.

Por isso vivi o lançamento da primeira biografia de Sueli Carneiro como mais que um feito histórico grandioso. Continuo Preta (Cia. das Letras, 296 págs., R$ 59,90),  escrita por Bianca Santana e lançada em 11 de maio, era – e é – um jeito de respirar, de dizer que nem tudo é sufocação e desespero. Em tempos em que a falta de oxigênio leva embora os nossos e as nossas, respirar esperança e nutrirmo-nos de resistência são combustível para seguirmos lutando por saúde, a nossa, em meio ao caos que foi instalado no Brasil de 2020, e exacerbado em 2021.

Imagine uma mulher negra pobre nascer, em 1950, em uma São Paulo segregacionista. E crescer em um Brasil excludente e racista como primogênita de uma família de seis irmãos, com seu pai e mãe. Todos pretos, pobres, sobre quem a sociedade desigual despejava, e ainda despeja, profecias autorrealizáveis de pobreza, baixa escolaridade, uma vida de sacrifícios e morte precoce. Pois bem, essa mulher negra, aos 70 anos celebrados ainda no início da pandemia – que parece não acabar nunca –, compartilhou sua história de vida como denúncia e recusa contundente às apostas racistas, afirmando: “Eu ainda estou aqui!”.

Na trajetória de Sueli Carneiro, o que é escuro é traduzido como resistência e luta e é cheio de possibilidades de mudança, contradizendo o poeta. Em seu caminho, tudo é espelho, reflexo de quem vem antes, oportunidade de autoconhecimento coletivo como mulheres negras, como mulheres, como brasileiras e brasileiros, como humanidade.

A potência de termos a biografia de uma mulher negra disponibilizada para todo mundo é poder espelhar o que existe, quem existe e existiu a partir do fio condutor daquela história de vida. A partir da vida de uma grande ativista e intelectual como Sueli Carneiro, encontraremos outras ativistas e intelectuais potentes como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Fátima Oliveira, Luiza Bairros, que, de diferentes formas, imprimiram marcas na trajetória da biografada e já partiram.

E veremos também Nilza Iraci, Lúcia Xavier, Sônia Nascimento, Conceição Evaristo e muitas outras que ainda estão aqui como tantas, como você e eu. Há ainda muitas vidas que precisam ser narradas. A história escrita e registrada de Sueli é um capítulo fundamental da história de todas nós, para todas e todos, abrindo caminho para a reflexão e a ação que precisam nos levar a mudanças na sociedade do medo, do caos e da invisibilidade. Maio terminou, a luta não.

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