Sueli Carneiro: Uma voz em prol do feminismo negro

É impossível falar de Sueli Carneiro e não reconhecer a sua importância em favor da democracia do país, sobretudo com a leitura de “Continuo preta”, biografia que a jornalista Bianca Santana acaba de lançar, retratando a trajetória de vida de uma das mais destacadas ativistas do movimento feminino negro brasileiro. Se isso não bastasse, a obra, que pode ser lida como uma grande reportagem, passa um pente fino na militância de Sueli, no seu destacado papel dentro de organizações sociais e políticas, bem como no corajoso enfrentamento ao regime militar que instituiu a ditadura no Brasil.

A jornalista, autora do celebrado “Quando me descobri negra”, trouxe para “Continuo preta” a condensação de 160 horas de entrevistas, realizadas entre 2018 e 2019. Autora e entrevistada trabalham juntas na “escavação” de um tempo que muito nos surpreende e apaixona. Remexem no passado e religam, em diálogos emocionais e precisos, a história de uma família negra, embricada com a história de um país em transformação, país esse impregnado de dolorosa memória do seu passado colonial e escravista.

Por este caminho é que “Continuo preta” nos faz conhecer, muitas vezes por relatos e confidências, o “mundo de Sueli”: suas fragilidades como filha e mulher, os percalços da sua vida profissional e acadêmica, a sua militância. Sem jamais perder a ternura, temos diante de nós uma Sueli de carne e osso, que se molda e se reinventa, transformando necessidade em sobrevivência, dor em luta, lágrimas em esperança. Para se ter ideia, no final dos anos 1960/70, o movimento negro de São Paulo e do Rio de Janeiro está se reconectando. As vozes de Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento, no Brasil, e Angela Davis, nos Estados Unidos, ecoam por todos os cantos, denunciando o racismo estrutural, termo ainda não adotado naquela época.

O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, dá seus primeiros passos, visando “defender a comunidade afro-brasileira contra a secular exploração racial e humana”. Sueli Carneiro está inserida nesse contexto, mas logo percebe que é preciso incluir no debate o recorte de raça e gênero. É daí que nasce seu primeiro livro, “Mulher negra: política governamental e a mulher”, de 1985, escrito com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa, seguido de “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”. Logo depois, funda o Instituto da Mulher Negra, o Geledés, onde finalmente pode colocar em prática, sua visão como socióloga e militante.

Laços de ancestralidade

O livro, escrito de forma cronológica, está dividido em três partes, abrangendo o nascimento de Sueli, em 1950, filha de Eva Camargo Alves e José Horácio Carneiro, com grande destaque sobre suas origens. Nesse sentido, traz uma bela digressão sobre os laços de sua ancestralidade, bastante ilustrativa e interessante, que a autora classifica de “hipótese de genealogia do sobrenome Carneiro”. Segundo o “Dicionário das famílias brasileiras” (1999), de Carlos Barata e Cunha Bueno, o nome, originariamente grafado “Carneyro”, deriva de “lugar de Carneiro”, antiga região de Astorga, na Espanha. No Brasil, destaca-se João Gonçalves Carneiro que, a partir de 1779, deixa vasta descendência nos arredores da cidade de Mariana, em Minas Gerais.

Capa do livro ‘Continuo preta’ Foto: Divulgação

Não que este seja mais um ancestral de Sueli, que hipoteticamente tem outros ilustres parentes distantes: o republicano Cesário Alvim, ex-prefeito do Distrito Federal; o senador Afonso Arinos de Melo Franco, autor, em 1951, da lei contra a discriminação racial, que leva o seu nome; e até o compositor Chico Buarque, sendo que em Minas Gerais se diz que “todo Carneiro de Ubá se considera parente distante do artista”.

O livro de Bianca Santana é o projeto bem refinado de afirmação da imagem de uma mulher negra que, com grande potência, tem ecoado no cenário político brasileiro. Também fica evidente que a história de Sueli Carneiro carrega um forte sentido de memória e de resgate da sua identidade ancestral. Nas páginas de “Continuo preta” estão mapeados diversos registros de suas companheiras de luta, como a voz da própria autora.

Sueli não se furtou de se revelar por inteira, se mostrando, acima de tudo, viva, jovem, charmosa. E, aos 70 anos, afirma que está na hora de passar o bastão, se referindo à nova geração de mulheres que estão se “descobrindo negras”, seja pelo cabelo crespo, pelo uso de turbantes ou dreads — “estilo” Sueli Carneiro da atualidade.

O livro ainda se destaca pelo projeto gráfico e a bela capa de Vinicius Theodoro, que mostra Sueli numa sala de aula, única negra numa imensa turma de alunos brancos. Dessa maneira, a biografada parece compartilhar da frase sempre dita pela médica negra Jurema Werneck, a cada despedida: “nos encontramos na luta”.

* Tom Farias é autor de ‘Escritos negros: crítica e jornalismo literário’

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