‘Black Power’, de Stokely Carmichael, dá dimensão da consciência negra

Obra fundamental do americano enfim ganha uma versão em português e defende a autonomia não só dos negros

A gritante ausência de uma tradução do livro “Black Power: A Política de Libertação nos EUA”, escrito em 1967 pelos ativistas Stokely Carmichael —conhecido como Kwame Ture— e Charles Hamilton foi sanada. Obra que se tornou referências para reflexões e debates sobre questões raciais, ganhou uma versão em português traduzida por Arivaldo de Souza, e publicada pela editora Jandaíra —em parceria com o selo Sueli Carneiro encabeçado pela filósofa Djamila Ribeiro, que é colunista deste jornal.

Esse trabalho nos apresenta três contribuições importantes –a primeira envolve a amplitude de sua abordagem, algo que caracteriza um clássico. Não se engane com o subtítulo, apesar de ele ter sido escrito a partir dos Estados Unidos e pensando naquele país, a ideia de poder negro fez a cabeça de muitas pessoas e contextos nos últimos 50 anos. Ler “Black Power” nos dá dimensão da ideia de pertencimento, projeto e valorização do que chamamos hoje de “consciência negra”.

Vale lembrar que a obra traz elementos bastante amplos para o entendimento da questão racial, como o diagnóstico do colonialismo interno, e sua relação com a manutenção da precariedade e a opressão das pessoas negras. Carmichael e Hamilton são muito didáticos ao explicar a diferença entre sistema e estrutura e por que é importante entendermos o racismo e a supremacia branca como problemas estruturais.

Um segundo ponto é a atualidade da abordagem —algo também digno de uma obra tradicional que parece atravessar o tempo. Um bom exemplo é a ideia de representatividade. Termo presente nas discussões de diversidade e inclusão antirracistas, muitas vezes aparece de maneira esvaziada como “basta ter um de nós lá”.

Os autores demonstram a limitação dessa noção de representatividade. Poder negro é conectar representatividade ao bem comum e não apenas a individualidade, é entender como ter figuras em instituições podem culminar em decisões para o bem de todos.

É muito mais do que aquilo que aparece na foto. Representatividade é muito mais que visibilidade, porque precisa estar aliada à autonomia e à autodeterminação. Essa perspectiva pode ser muito fértil para os impasses atuais nas discussões de diversidade, que pretende incluir indivíduos sem considerar mexer nas estruturas que perpetuam exclusão, hierarquização e desigualdade.

A abordagem sobre modernização política é outro elemento muito pertinente. A necessidade de questionar o status quo, inovar nas soluções e caminhos, incluir e ampliar o outro são desafios que atravessam diversas questões como de raça, gênero, corpo, classe entre outros. Isso tudo aparece trabalhado neste livro. Portanto, é um trabalho que abre também caminhos críticos e inspiracionais para todas as lutas pela real inclusão na sociedade.

Por fim, uma terceira contribuição deste clássico é desfazer alguns estereótipos. Há uma construção de senso comum vinculado à memória da luta contra o racismo que cria polarizações entre, supostamente, integracionistas e separatistas, associando por exemplo imagens de pessoas como Martin Luther King como conciliadores, e Malcolm X, Panteras Negras e o próprio Stokely Carmichael a raivosos, aqueles que “querem separação e vingança”.

O problema dessa clivagem, além de ser limitada, é que ela estabelece um valor moral contra aqueles chamados “agressivos”, que possuem uma visão mais crítica sobre ideias em torno da integração e diversidade, como, por exemplo, de serem militantes ou como se sofressem de falta de sofisticação nas ideias. O livro deixa claro como essa visão é equivocada.

É um trabalho consistente que dialoga diretamente com trabalhos, conceitos e dados da época, bem como expõe de maneira didática e generosa os limites de algumas concepções —como a ideia de “coalizão”— não simplesmente as negando, mas apontando o que poderia ser para que fossem mais efetivas.

Poder negro é sobre autonomia e autodeterminação, não apenas das vidas negras, mas de toda a sociedade, uma obra incontornável. Contarmos com sua tradução para enriquecer debates atuais, em prol de uma modernização política e autodeterminação de todos, é muito relevante. Isso é poder.

+ sobre o tema

Violência sexual em espaços noturnos e responsabilização de agressores

As recentes notícias de que duas mulheres teriam sido...

Polícia Civil de Alagoas prende homem por injúria racial e ameaça

A Polícia Civil, por meio da seção de capturas...

Quase metade das crianças até 5 anos vivia na pobreza em 2022, diz IBGE

Quase metade das crianças de zero a cinco anos vivia em...

para lembrar

Sérgio Martins – Direito e Reverso do Direito: Uma Jornada pela Dignidade

Quando na cabeça do indivíduo brota a rejeição por...

História recente dez anos dos movimentos negros

Hamilton Cardoso Há uma década, apenas, em 1978 os movimentos...

“Não se faz revolução no conforto”, diz Antonieta Luísa Costa

Antonieta Luísa Costa, presidente do Instituto de Mulheres Negras...
spot_imgspot_img

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Morre Maryse Condé, grande voz negra da literatura francófona, aos 90 anos

Grande voz da literatura francófona, a escritora de Guadalupe Maryse Condé morreu na madrugada desta terça-feira (2), segundo informou à AFP seu marido, Richard Philcox. A causa...

Com 10 exibições que abordam a luta antirracista, Mostra do Cinema Negro tem sessões a partir de 4 de abril em Presidente Prudente

O Serviço Social da Indústria (Sesi-SP) promove, entre os dias 4 de abril e 23 de maio, uma programação com dez filmes que celebram o cinema...
-+=