Blackface não é homenagem: Espetáculo “Trem de Minas” tem ator branco caracterizado de personagem negra de forma estereotipada

Com o uso da mesma ferramenta, a peça “Trem de Minas” gerou polêmica, antes mesmo de sua estreia na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, prevista para ontem à noite, quando o jornalista mineiro Miguel Arcanjo Prado chamou atenção para a técnica em seu blog, o que repercutiu nas redes sociais.

“Trem de Minas” é uma comédia dos atores e irmãos gêmeos Leosino e Leonildo Miranda Araújo, ou Leo e Leo, como assinam, que trata da cultura mineira, em seus aspectos históricos, remetendo a alguns de seus personagens típicos. É nesse viés que os artistas representam, com o uso do blackface, uma mulher negra, em referência à babá dos gêmeos. “Nós temos uma mãe preta que ajudou nossa mãe a cuidar de nós. Fazemos essa homenagem a ela, que nos carregou no colo, mas as pessoas entendem de outra forma”, afirma Leonilson. “Temos que aceitar a crítica, mas nossa proposta é outra. É uma maneira de retratar a cultura mineira de forma diversificada. Não estamos brincando com a questão étnica no sentido de ridicularizar, mas de homenagear. Eu ainda não entendo essa questão, até gostaria de entender”, completa o ator.

REAÇÃO

Se a ação do blackface já anuncia o racismo, as justificativas são reveladoras de seu naturalismo e impregnação na cultura brasileira. “A questão é que o povo faz esse tipo de coisa como se fosse algo natural. Não enxergam o preconceito. Mas chega, não dá mais”, comenta Marcos Alexandre, ator e professor doutor da Faculdade de Letras da UFMG.

“Eu entendo que eles estão bem-intencionados, mas será que a babá deles se vê representada dessa forma que eles trazem? Pintar a cara, colocar uma roupa estranha e fazer uma caricatura, que homenagem é essa? Isso é trabalhar com os clichês. É incoerente, ainda que, por trás, haja uma boa intenção. Não podemos deixar de dizer que eles estão equivocados”, pontua.

Para Soraya Martins, atriz e pesquisadora, o exemplo é um reflexo da reprodução do racismo no país. “Esses artistas nem devem saber o que aconteceu com a Cia. Os Fofos (leia o infográfico) em 2015. Temos que abrir e estender isso para a sociedade de forma ampla. Vamos ter que fazer pedagogia. Apontar onde está o racismo, o que significa não chamar um ator negro para fazer um papel”, enfatiza.

Soraya cita o episódio que motivou Abdias do Nascimento a criar o Teatro Experimental do Negro (TEN). Em 1941, ele assistiu a uma montagem de “O Imperador Jones”, obra de Eugene O’Neill em que o protagonista traz reflexões sobre a vida de uma pessoa de origem africana em sociedades racistas nas Américas. “Ele ficou abismado quando viu um ator branco fazendo blackface, porque um branco estava retratando um negro daquela forma, pintando o corpo”, conta a atriz e pesquisadora.

Marcos Alexandre lembra o lugar de fala, tão reclamado por movimentos e segmentos sociais em busca da garantia da representatividade. “É o lugar a partir do qual o sujeito enuncia seu discurso. Nós, como sujeitos negros, temos um repertório que nos permite falar desse sujeito. É o lugar da nossa vivência, das nossas memórias afetivas. Não é que as outras pessoas não possam falar sobre o assunto. Senão, caímos na fala de sempre. Na arte, todo mundo pode fazer. O teatro é para que todos façam. A questão é como. O que se quer trazer com essa representação? Estereótipos desse sujeito? Isso não dá mais”, observa.

Outro ponto que o exemplo de “Trem de Minas” levanta é a representação de negros dentro de instâncias de seleção e curadoria. A peça faz parte da programação da Campanha de Popularização, evento do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc) e leva a mesma personagem para o espetáculo “Contos Afro-Brasileiros”, que foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. “Não há negros nesses lugares de escolha, de curadoria. Há brancos que, em sua maioria, não dialogam com questões que fogem do universo dele”, diz Soraya.

O Sinparc afirmou, por meio de nota, que acredita “na liberdade de expressão”. “O ator possui vários recursos cênicos apropriados para seu trabalho. Um deles é a caracterização de um personagem”, informou. O sindicato ainda orientou que pessoas ofendidas entrem em contato com a ouvidoria da Campanha ou órgãos públicos.

 

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