A luta pela dignidade humana é algo inegociável para quem vive na periferia, e a única perspectiva de vitória possível nesse duelo entre o que somos e o capitalismo, se dá pela via coletiva. Uma prova foi o encontro de centenas de ativistas do Brasil, organizado e realizado pelo PerifaConnection em 11 e 12 de junho no Museu de Arte do Rio de Janeiro, na Pequena África. Ali, Ana Flauzina, professora de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), colocou em xeque a ideia de uma mudança da realidade que não quebre com os pressupostos colocados pela branquitude para a manutenção do poder que impera há mais de 500 anos no Brasil.
O vigor de todos demonstrou que nosso desafio não é apenas tirar do Planalto o exterminador do povo brasileiro, mas que a luta que assumimos é ancestral e não se compromete apenas com o nosso tempo.
Porém, é também no nosso tempo que estamos sendo exterminados, e Sueli Carneiro sentenciou a tarefa número um desta geração: ficarmos vivos. Parte desse movimento passa por não abrir mão de pautar nossas demandas nos debates sobre educação, racismo ambiental e outros eixos, como cultura, saúde, racismo religioso, violência, mudanças climáticas, trabalho e tecnologia.
Além disso, durante sua fala, a filósofa falou sobre a expressão Bongola, termo que na língua de tronco africano bantu kimbundu remete a reunião. Esses debates ganharam corpo na agenda política das periferias, uma das respostas possíveis quando questionam qual é o projeto da nossa geração, e que seguirá sendo alimentada nos próximos meses.
A resposta para o mundo que a gente quer vem das periferias e das comunidades tradicionais desse país, as quais sobrevivem há séculos à margem de direitos básicos, criando e recriando modos de vida em rede e em harmonia com a natureza. Sempre nos aquilombamos para criar soluções. Agora, não vai ser diferente.
A educação foi apresentada como fundamental para a mudança da estrutura brasileira forjada em desigualdades, desde o enfrentamento da lgbtqifobia, do não acesso às tecnologias digitais para produção de conhecimento, do descaso institucional e do não cumprimento das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que exigem o ensino das histórias e culturas afro-brasileira e afro-indígena.
Como alcançar a transformação que queremos, de garantia de direitos, de preservação e de reconhecimento do legado das populações negras e indígenas, senão por meio deste direito humano fundamental que constrói narrativas e preserva a nossa história e memória? Ana Flor, Fábio Conceição, Midiã Noelle e Wellington Lopes nos lembraram que o futuro é plantado agora e são os educadores e as educadoras, diplomados ou não, que integram as primeiras referências de luta e resistência do nosso recordar, sejam nas nossas comunidades, escolas ou demais espaços formativos.
Nas conversas sobre democracia e racismo religioso, chegamos a algumas perguntas que confirmam que o modelo que nos foi colocado não dá conta das demandas da maioria da população. Precisamos defender essa democracia e buscar que, cada vez mais, nossos corpos e ideias ocupem os espaços de tomada de decisão sobre os rumos da sociedade. Na conversa sobre racismo religioso, o pastor Kleber Lucas e a ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum mostraram que a tecnologia comunitária da ancestralidade é potente mesmo no diálogo com as diferentes religiões.
Afinal, estamos em um país em que a fé é cada vez mais operada por poderes que tentam manter os mesmos homens brancos e ricos em seus privilégios pelo preço que é pago por uma maioria de pessoas negras e pobres. Por isso, é urgente entender que o deus miliciano, que encarna o projeto de morte e perseguição dos terreiros, nasce de uma experiência político-religiosa de lideranças fundamentalistas que tentam se utilizar do Estado brasileiro para fins privados e de um grupo religioso. Nesse diálogo ficou registrado como a experiência religiosa a partir das pessoas que estão nas periferias do mundo são maneiras de criar novas possibilidades de vida.
Ainda na conversa sobre racismo ambiental ficou constatado que o buraco é muito mais embaixo. O ataque a lideranças comunitárias, o descaso com obras de saneamento básico e o abandono das periferias pelo Estado leva a mortes, adoecimentos e prejuízo coletivo.
Quando olhamos para o rosto de quem foi afetado em Petrópolis, Recife ou no sul da Bahia estamos falando de pessoas negras, e esse é um debate que não pode mais ser feito sem a nossa presença para que as demandas da maioria sejam contempladas e não fiquem apenas no discurso.
Aquilombar é praticar a esperança na ação. É lutar no presente, entendendo que o compromisso é feito com gerações passadas e com as que estão por vir. É assumir o protagonismo do nosso tempo.