“Brasil S/A consegue desconstruir a nossa cordialidade”, diz filósofo

Érico Andrade analisa filme do pernambucano Marcelo Pedroso, que foi selecionado para o Festival de Berlim

Por Érico Andrade Do Diario de Pernambuco

Hiperbólico. Música estrondosa, clássica. Máquinas desejantes (referência a Guattari e Deleuze) e eretas. Potência que não está no dito. O trânsito de máquinas e de pessoas é o que compõe os diálogos de Brasil S/A. As personagens não falam. Falam apenas as máquinas e a natureza. A música do filme – merecidamente premiada – expressa, quando necessário, a voz da natureza e das máquinas. O natural e o artificial são levados ao extremo no filme. Desde a primeira imagem, o Brasil é apresentado na sua dicotomia estrutural. Dividido entre uma natureza frondosa e construções que consomem a natureza porque invadem o mar (a plataforma de petróleo é enquadrada na sua penetração sobre o mar); o mangue (é dilacerado na cena angustiante da moto serra); as florestas (cortadas pelas estradas e enquadradas numa tomada área que mostra o contraste entre o natural e o artificial) e o canavial (devorado pelos modernos tratores). Máquinas que evaporam a terra e com os seus sons ditam a vida das pessoas. Brasil S/A é o Brasil. É mais Brasil do que o Brasil porque na sua bandeira, que em diversas tomadas aparece no filme, as palavras ordem e progresso não existem. Há um furo no Brasil de Brasil S/A.

O furo é O Brasil contraditório onde pobreza e riqueza convivem lado a lado. É o Brasil dicotômico porque dividido em duas etnias: branco e negro. É o Brasil paradoxal porque o discurso da cordialidade colide com a procura pela felicidade individual e individualizante. Felicidade individualizada em cada personagem do caminhão cegonha, inclusive nas crianças, que vivem seus prazeres individualmente. Felicidade individual presente na cena em que a comida rápida, própria da vida fast food, é devorada. Presente no batom que pinta a nossa superficialidade, materializada num corpo milimetricamente programado para ser bonito. Presente nos jogos de aparelhos que deixam as crianças confortavelmente entretidas. A nossa proclamada cordialidade leva um tiro em Brasil S/A. O tiro, claro, só atinge a pobreza – invariavelmente negra – porque o branco que atira, que dirige, que sai dos seus condomínios artificiais como a grama sobre a qual estão sentados, está, como mostra um close violento, blindado.

Diante de tantas contradições o filme consegue tratar de uma que atravessa a história do Brasil, bem como atravessa a narrativa do filme. O racismo. O maracatu embraquecido não apenas pelo pó no rosto (enfocado corretamente), mas, sobretudo, pela música que os faz desenhar uma coreografia estranha porque colonizada. O negro dança sorridente o ritmo do colonizador. Assim, ele pode dançar. As profissões que o filme mostra, com ênfase, são empretecidas porque destinadas apenas aos ex escravos. Catar caranguejo. Cortar cana. Dirigir tratores. Diferentes tons de uma mesma cor, de uma pobreza monocromática.

O olhar espantado das personagens negras que assistem ao desenvolvimento com um estranhamento é revelador. Por um lado, porque só participam do progresso dentro das máquinas, que os conduzem. Eles não têm autonomia, como mostra a cena, que, por sinal, faz referência a Em trânsito, do mesmo diretor, em que as máquinas seguem o comando de uma personagem branca. Mesmo a autonomia em fazer o corte da cana passa a virar, depois da vinda das máquinas, apenas uma coreografia silenciosa e enfraquecida diante do poder da máquina cujo som fez os trabalhadores pararem a sua diversão – o jogo de dominó. Os negros são vestidos de acordo com os padrões do desenvolvimento, suas fardas variam, mas a sua condição, como mostra sutilmente o filme, ainda é a margem da sociedade. Brasil S/A mostra que o desenvolvimento brasileiro é marcado pela repetição: do racismo, da segregação e do individualismo. Numa mesma narrativa Brasil S/A consegue desconstruir a nossa cordialidade e mostrar que as máquinas, como na cena em que é filmado o teto do carro para mostrar o reflexo dos prédios, espelham apenas aquilo que elas mesmas constroem: segregação.

* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco: [email protected]

Veja o teaser do filme:

 

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...