“Escravatura” —”Slavernij”, em holandês —, exposição em cartaz até o fim do mês no Rijksmuseum de Amsterdã, foi inaugurada virtualmente pelo rei Willem-Alexander da Holanda em maio e aberta ao público em junho. O evento marcou o retorno das visitas presenciais ao museu, um dos mais importantes da Europa.
A exposição, sucesso absoluto de público, esteve mais de quatro anos em preparação. Sua concepção traduz um esforço mais amplo de curadores e historiadores europeus de resgatar a história escravocrata de países como Holanda, Inglaterra, Bélgica e Alemanha.
“Os efeitos subsconscientes da escravatura nas sociedades europeias atuais explicam a importância e a urgência desta exposição”, diz Valika Smeulders, historiadora-chefe do Rijksmuseum.
Na identidade nacional da Holanda, por exemplo, por séculos se cultivou a ideia de tolerância e abertura. A escravatura é tradicionalmente vista como conceito “estrangeiro”, um crime cometido em terras longínquas, sem qualquer envolvimento da nação.
No entanto, de 1600 a 1860, os holandeses exploraram o trabalho e o tráfico de escravizados em seu vasto império colonial, que incluía partes da Indonésia, da África do Sul, das Antilhas, do Suriname, de Nova Guiné e do Brasil.
Durante esse período, é estimado que tenham traficado cerca de 600 mil pessoas pelo oceano Atlântico e cerca de 1,1 milhão pelo Índico. Esconder essa história pode ter sido conveniente e apaziguador, mas se torna difícil numa sociedade holandesa cada vez mais multicultural.
Com a exposição, o museu faz um movimento no sentido de restaurar a verdade histórica. Como diz Tacco Dibbits, diretor-geral do museu, “a escravatura não é um conceito abstrato”. “Durante mais de 250 anos foi parte integral de nossa história, que tem de ser estudada e aprofundada se quisermos ter uma imagem mais completa de nosso passado e uma melhor compreensão da sociedade de hoje.”
A conexão do passado colonial escravocrata com os dias de hoje fica evidente num dos pontos focais da mostra, a instalação “La Bouche du Roi” —ou a boca do rei—, do artista contemporâneo beninês Romuald Hazoumé, que representa um navio negreiro no qual 304 máscaras feitas de galões de gasolina evocam a desumanização dos escravizados. Ou seja, a história da escravidão ainda se produz entre nós.
A mostra se organiza em torno da história de vida de dez diferentes pessoas envolvidas no sistema colonial da Holanda. São elas João da Mina, Wally, Oopjen, Paulus, Van Bengalen, Surapati, Sapali, Tula, Dirk e Lohkay. Há no site da exposição vídeos sobre cada um dos dez personangens, além de animações curtas.
São 140 objetos cotidianos da cultura e da economia escravocrata que deixam claros a existência de um regime e seus efeitos nas vidas de pessoas muito diferentes. O dinheiro sujo contaminava tudo.
Podemos ver a coleira de metal gravada que Paulus teria usado na Amsterdã do século 17 —e que até recentemente era catalogada pelo museu como canina—, ou a opulência em que vivia Oopjen, retratada por Rembrandt e cuja riqueza vinha do açúcar produzido por escravizados no Brasil, ou, ainda, o tronco em que João da Mina sofreria maus tratos.
O trabalho de pesquisa para a produção da exposição acabou se estendendo ao acervo permanente, em que, desde fevereiro deste ano, 77 peças foram recatalogadas, com informações adicionais que desvelam a relação até então invisível entre a obra ou o artista e o sistema da escravatura.
A exposição foi incluída no currículo das escolas, e a ideia é que atitudes sociais em relação ao racismo possam se modificar com o conhecimento mais aprofundado de partes pouco divulgadas da história do país.
De acordo com o historiador Alex van Stipriaan, da equipe de criação de Museu Nacional Holandês para o Tráfico de Escravizados, que deve ser inaugurado em 2030, “para que as mudanças aconteçam de fato, a história da escravidão e do colonialismo deve fazer parte da história nacional”. Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente.