Brasil vive sua terceira escravidão sob a ordem mundial de novo capitalismo

09/10/25
Folha de São Paulo, por Tom Farias
  • Ativistas e especialistas denunciam novas tecnologias que aperfeiçoam o racismo
  • Falar sobre abolicionismo e redes sociais implica dizer que há uma militância vigilante denunciando práticas criminosas

O ativismo negro das redes sociais me faz lembrar —guardadas as devidas proporções—, o movimento abolicionista do século 19, que culminou na abolição da escravatura. Naquela época, a exemplo de hoje, lideranças antiescravistas, como Luiz Gama e José do Patrocínio, utilizaram das armas e ferramentas que dispunham para enfrentar a lógica do sistema escravista, herança dos tempos coloniais.

O Brasil é o maior país da América do Sul e foi o último a abolir o cativeiro em território americano, em 1888. No livro “Luiz Gama Contra o Império” (Contracorrente), que já tivemos a oportunidade de comentar, o historiador Bruno Rodrigues de Lima traz à tona os embates do poeta e jurista baiano radicado em São Paulo.

Pautado por uma “advocacia combativa”, Gama fez do direito instrumento da luta escrava. Sob a luz da doutrina jurídica, leva ao extremo sua defesa pelo “fogo sagrado da liberdade”, enfatizando a proposição de que “o escravo que mata o senhor”, seja em que circunstância for, “mata sempre em legítima defesa” da própria vida.

No meu livro “José do Patrocínio, a Pena da Abolição” (Kapulana), o tribuno negro campista, um dos fortes nomes do abolicionismo brasileiro, cunhou uma frase, de teor antirrepublicano, que o fez perseguido e combatido pela oligarquia política da época: “A escravidão é um roubo. E todo dono de escravo é um ladrão”.

Luiz Gama e José do Patrocínio viveram durante o chamado período da “segunda escravidão”. Este instituto se deu, prioritariamente, no princípio do capitalismo industrial, impulsionado pelo advento da manufatura —do latim “manu” (mão) e “factura” (fazer)—, que, no Brasil, tem início no século 19 e encerra com a Lei Áurea, famoso decreto assinado pela princesa Isabel.

Falar sobre abolicionismo e redes sociais implica dizer que há uma militância vigilante denunciando práticas criminosas, profundamente violentas. Assim vi o episódio de racismo contra o cantor baiano Samuel Marques numa academia de ginástica de Salvador, na Bahia. O artista, um homem negro, foi atacado verbalmente por um homem branco, de forma racista e covarde, padrão que se sustenta há anos no Brasil.

A primeira infância também não escapa do racismo. Recente levantamento divulgado pelo Datafolha constatou que pelo menos 16% das crianças entre zero a seis anos já sofreram racismo no ambiente escolar. Segundo os dados, encomendado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, instituição que atua no seguimento da primeira infância no país, uma em cada seis crianças nessa faixa etária já teria sido vítima de racismo, ocorrido na creche ou na pré-escola.

Tais ocorrências infelizmente não estão isoladas no Brasil e têm crescido na mesma medida que a população negra as denuncia.

Em seu livro “Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial” (Edusp), o historiador americano Dale W. Tomich formula o conceito de “segunda escravidão”, lastreado na formulação do papel da escravidão na economia capitalista, com base na teoria “dos sistemas-mundo e a nova história da economia”.

Nos tempos de hoje, com recorrentes práticas racistas, é preciso pensar que uma “terceira escravidão”, iniciada a 14 de maio de 1888, esteja em pleno funcionamento. Sua face tem fulcro no atual capitalismo mundial, sobretudo em países como o Brasil, onde os termos raça e classe expõem a divisão social de uma nação eivada de privilégios, um requinte entre a casa grande moderna e a senzala das favelas contemporâneas.


Tom Farias – Jornalista e escritor, é autor de “Carolina, uma Biografia” e do romance “Toda Fúria”

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