A aventura para compreender as decisões judiciais do caso Caçadas de Pedrinho, em curso desde 2010, passa pela imprensa, a poderosa e generalista e a segmentada. Mas são as ágeis falas não corporativas do cotidiano virtual que não desistem de pautar o assunto. Como uma espécie de telefone com fio desencapado, fragmentos da notícia daqui e dali em novas combinações acrescidas ou subtraídas de vivências, repassam o aviso. O livro e seu autor e o judiciário são mediadores para a sociedade brasileira pensar seu racismo, que sabemos, é um celeiro de crenças, induz práticas, sendo uma construção social sob entendimentos instantâneos. Mas, os vereditos oficiais explicitam o relacionamento entre as instâncias de poder de nossa república com as demandas da sociedade civil. E, estamos na expectativa do dia 15 de maio de 2020, a ser parâmetro para as novas repercussões.
Recordando os fatos[2], o MEC representante do poder executivo, no início da peleja estava um governo de esquerda, uma década depois se apresenta como extrema direita. O que não mudou foi o interesse do circuito editorial na polêmica. Observá-la é como retirar finas camadas dos argumentos surgidos ao longo desses anos, para melhor conhecermos a nós mesmos dentro deles.
Direito à dominação?
À época do caso, o vínculo de M. Lobato com as doutrinas racistas do período em que viveu foram retomados por ensaios, bem fundamentados, como o de Ana Maria Gonçalves[3]. O mais impactante de sua análise foi a condução da denúncia do racismo chamando a atenção para certo leitor da obra. Vejamos!
A propaganda política baseada em superioridade racial, pró apartheid e a defesa de uma klux klux kan[4] não deixa dúvidas acerca do DNA dogmático na estrutura do pensamento e, por sua vez, impregnada na produção do escritor[5]. Mas, se a perspectiva racista sempre esteve lá, o que mudou para ela ser tão extraordinariamente notada indo acabar no STF?
O abalo chegou aos produtores de conteúdos para a infância e juventude. Um deles, como lidar com o teor racista de um compêndio do passado em sua circulação no presente? Apesar das idas e vindas embaralhando opiniões, vale notar que o princípio desse raciocínio é o mesmo atino acerca da escravidão de lá detrás agindo hoje em dia. Estaríamos avançando como sociedade?
Obviamente, não é possível examinar alguma manifestação artística descolada do contexto que a gerou. Sendo o racismo editorial uma faceta do maior, seja de outrora ou agora prevê um modo de conceber o período histórico da ocorrência. O alerta está para enxergá-lo pasteurizado. Imagine uma expressão literária lidando com as ideias hegemônicas do momento. Certamente, as respostas autorais a elas não seriam lineares e muito menos homogêneas. Se um autor é racista então todos desse tempo serão? Esse engano determinista alivia o peso da autoria, eventualmente racista, responsabiliza a época enquanto minimiza a elaboração particular. Da mesma forma, compreender o trecho de uma biobibliografia. Ele é a fotografia, sempre, de um instante. A observação densa pode indicar prevalências porque a criação não se dá no vácuo sendo parte das relações de poder, sem perder de vista a área das publicações.
Dito isso, do aparente embate entre defesas e ataques à MLobato, o que veio, mesmo, à tona foi a antiga indiferença acerca do leitor do repertório. A minúcia em meio ao turbilhão, provocou um rearranjo na direção do aprendizado sobre a produção atual, no quesito relações raciais. O trabalho, citado, de Ana Maria Gonçalves, foi afirmativo nessa direção desde o título- Lobato: não é sobre você que devemos falar- ampliando de vez, o escopo para perceber o material. Parte do setor foi ágil, outra, demorou e há, ainda, a que não alcançou esse entendimento.
O aguçamento da observação sobre quem está lendo no passado e no agora, estabelece uma nuança a respeito dos princípios universalistas não darem conta do leitor das parafernálias à disposição. A ausência ou a confecção inadequada seja boneca ou personagem preto, faz mal à saúde do imaginário de todos os leitores. Expõe uma cidadania baseada na branquitude onde o modelo branco não é parte e sim o representante da humanidade.
Cada habitante de uma narrativa e onde ele está posicionado é uma arquitetura conotada para a humanidade representada por ponto a ponto de vista. A velhinha de origem africana recorrentemente desrespeitada contrasta, na estrutura narrativa, com a grega como lugar do respeito. Sim, é a expressão do pensamento do autor e sobre isso nada se pode fazer. Para além do estudo sobre o que ficou resguardado nas páginas originais, o agravante está na ausência de contrapontos para a representação, em outros livros fornecedores de elementos para o imaginário. E há ainda o problema da escala que igualou a data de nascimento de MLobato,18 de abril, ao Dia Nacional do Livro Infantil:
“(…) E se tudo isso compõe a obra, o dono dela não é um qualquer. O escritor empreendedor foi se tornando o ícone da produção literária nacional para a gurizada, recebendo todo o apreço como habitante do panteão dos bem letrados. Tanto prestígio pede a atenção para a ordem de grandeza de difusão do repertório e, nele, as estereotipias todas envolvendo os padrões fenotípicos e crenças correlatas. Por esse ângulo, o impacto dessas mídias nas infâncias e juventudes de um país onde a desigualdade impera precisa considerar a escala do amado M. Lobato.”[6]
Os ilustradores de MLobato, em diferentes épocas, garantem, da mesma forma, narrativas visuais para exame. São argumentos culturais saídos de um tempo as não permanecem lá. Não é da sua, mas das nossas crianças pretas que falamos. A agressão de lá estendida para as daqui se manterá naturalizada? Não! O rei está nu em público.
A produção editorial é pauta em inúmeras organizações do movimento negro amparadas por uma coletividade não institucionalizada, mas com demandas afiadas na quentura do debate público. Um poucadinho mais de “consciência” do mercado de livros favoreceu (um bocadinho) a presença negra pelos elos da criação. Nunca mais retrocessos?
Todas as decisões do STF foram conservadoras. Em 2010, o Conselho Nacional de Educação recomendava a inclusão de notas explicativas para o livro circular nos ambientes educativos o que foi homologado pelo ministro Fernando Haddad. Em 2011, o denunciante associado ao Instituto de Advocacia Racial- IARA pediu a anulação dos pareceres emitidos pelo CNE por liberar a adoção do título em escolas públicas, não foi atendido. O processo fica com o ministro Luíz Fux (em quem confiamos!). Em 2012, ele deferiu o ingresso de Joyce Campos Kornbluh e Jerzi Mateusz Kornbluh, herdeiros do escritor Monteiro Lobato, como assistentes do caso. À época, ele justificou a qualidade de herdeiros e de detentores dos direitos autorais da obra de MLobato. É assim como relembrar a vinda de Barack Obama pela primeira vez ao Brasil, sendo exaustivamente entrevistado pela grande imprensa. Entrevistadores negros? Nenhum. Seria racializar o momento, diriam muitos.
Em 2014, o ministro decide que o material pode seguir sem nota explicativa sobre racismo. Em 2017 ele retira a pauta recolocando-a agora. Do histórico de mandato em mandato, recurso em recurso, agravos regimentais, o paradoxo está posto numa corte que aprovou, por unanimidade, o princípio constitucional das ações afirmativas (2012) considerando o Estatuto da Igualdade Racial aprovado no Congresso (2010). Aliás, que também levou dez anos para ser sancionado.[7]
E qual a relação entre a mortalidade pelo covid19 e um ingênuo acervo de livros?
O bom convívio com a lógica racista do repertório lobatiano é uma espécie de – E daí? Aqueles que se colocam indiferentes à violência simbólica negligenciam a prática em submeter leitores negros e manter a naturalização geracional para todas as crianças iniciadas nessa leitura. Há dentro da estrutura da obra um sistema perverso marcando a ferro as representações sociais entre segmentos populacionais espelhados nos personagens. E fora dela, o nome do “grande” escritor que defendeu a segregação racial, exaltou a Kukluxkan, difundiu o movimento eugenista, continua batizando bibliotecas, muitas delas em territórios negros como destacou o artigo de Juliana Correia:
“(…) obra está nas escolas públicas, especialmente nas periferias, nos morros e favelas, onde as crianças matriculadas são majoritariamente negras. Muitas bibliotecas ou salas de leitura dessas instituições são nomeadas “Monteiro Lobato”, em sua homenagem. No entanto, vale lembrar que se dependesse dele e do movimento que ele integrava essas crianças nem existiriam hoje.[8]
Falta abrir o escopo para o impacto dessas leituras em condições sociais tão evidentemente distintas. Falta uma práxis crítica que consubstancia projetos de justiça social. Portanto, a relação constitui o devir da sociedade brasileira. Quantos discursos em prol da perfeição no convívio pós covid19 negligenciam as reivindicações da população negra diante do conhecido genocídio em curso? Histórica, mas atualizada no comportamento embasado pelas sombras e potências do imaginário. Desmanchar o direito à dominação internalizado, de segmentos populacionais sobre outros é a luta antirracismo no Brasil em aliança com a que faz sentido em outras diásporas. Temos a rede como instrumento e a importância sistêmica para transformá-la em rede de proteção, de fato de nossa cidadania. E repassá-las para as novas gerações como fazem as histórias.
[1] – Dra em Antropologia Social, escreve para crianças desde 1995
[2] A obra escrita em 1933 teve uma versão adotada em escola do DF. Tudo como dantes no quartel d´Abrantes, não fosse o reparo do técnico em gestão educacional da SEE do Distrito Federal- Antônio Gomes da Costa Neto. A denúncia protocolada na Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial- Seppir pleiteia, então, o direito de abster a Secretaria de Educação de utilizar livros, material didático ou qualquer outra forma de expressão promotora da prática de racismo na Educação Básica daquela unidade federativa. Na argumentação, observa ainda que para as reedições recentes do livro, os editores consideram as novas regras ortográficas. E como o enredo gira em torno de uma caçada à onça, a atenção ao debate ambiental vem incorporando notas explicativas acerca da Lei de Proteção de Animais Silvestres. A respeito da aquisição e distribuição do título pelo PNBE, o questionamento alega a contradição relacionada ao seguir critérios do próprio programa de leitura do MEC comprometido com metas de identificar fatores geradores de discriminação.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial -Seppir solicita consultas ao Conselho Nacional de Educação – CNE. A favor do técnico havia a própria orientação do MEC por uma educação antirracista, uma resposta às demandas dos movimentos negros. Sendo a biblioteca base e um importante apoio no âmbito das políticas públicas, estava já em vigor a Lei 10639/03 e 11.645/08, que incidem sobre a produção de saber acerca das populações negro-africanas e indígenas com vistas, exatamente, a erradicar a série de preconceitos a elas associados. Nas diretrizes para implementar a legislação, os critérios para acervos, não selecionaria obras assentadas em estereotipias raciais. Em 2010, a implementação legal vinha conseguindo pautar questões com histórico de silenciamento.
A consulta que chegou ao CNE foi respondida com o parecer (CEB nº 15/2010) sob a relatoria da conselheira Nilma Lino Gomes. Em suas recomendações, o livro poderia ser adotado, com a inclusão de nota explicativa sustentada em estudos “que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura” e com a capacitação de educadores para sua utilização “de forma adequada na educação básica”.
As editoras passariam a ter que produzir nota técnica contextualizando a produção embora, apenas, nas novas impressões. A reação veio em forma de manchetes que apregoavam estar MLobato sendo caçado, perseguido, queimado e censurado no país. A falsa ideia atribuída ao Parecer fez surgir, de todos os cantos, manifestos em defesa do escritor. Frente à repercussão, o ministro da educação, na época Fernando Haddad, não homologou o Parecer devolvendo-o para reexame. O segundo parecer (CEB nº 6/2011) emitido pelo CNE voltou mais incisivo ainda quanto à responsabilidade do PNBE de seguir seus próprios critérios além de recomendar a contextualização crítica da obra e do autor à luz dos estudos críticos sobre literatura e racismo implicado na formação de educadores ampliando a recomendação para os sistemas de ensino público e privado de todas as localidades, sendo homologado em 2011.
Porém, o reexame não satisfez o denunciante que associado ao Instituto de Advogacia Racial- IARA pede a anulação dos pareceres emitidos pelo CNE por entender que liberavam a adoção do título. O IARA redefiniu seu encaminhamento e impetrou um mandato de segurança no STF. O processo foi entregue ao ministro Luiz Fux que promoveria reuniões de conciliação entre o impetrante e o MEC, as quais resultaram sem acordo.
Em 2012, participaram das audiências o secretário de Educação Básica do MEC, Cesar Callegari, e de educação continuada, alfabetização, diversidade e inclusão, Cláudia Dutra alegam que o próximo passo é aprofundar o debate. “Primeiro na formação de professores, segundo nas orientações que chegam às escolas por meio das diretrizes do CNE e do próprio Ministério da Educação. E quando forem compradas novas obras, que tenham essas explicações acerca dos contextos históricos, contextos regionais”
O IARA ingressa, ainda, na Controladoria Geral da União (CGU) com uma representação para investigar a compra do livro Negrinha pelo Ministério da Educação (MEC) que pelo conteúdo racista e não poderia ter sido adquirido com recursos públicos.
Em outubro do mesmo ano, o ministro Fux deferiu o ingresso, como assistentes, de Joyce Campos Kornbluh e Jerzi Mateusz Kornbluh, herdeiros do escritor Monteiro Lobato. À época, Fux levou em conta a qualidade de herdeiros e de detentores dos direitos autorais da obra de Lobato.
Anos mais tarde, em 2014, Fux negou seguimento ao Mandato de Segurança justificando entender que a Constituição Federal não autoriza o STF a julgar Mandado de Segurança contra ato de ministro de Estado (apenas contra atos do presidente da República, dos presidentes da Câmara e do Senado, do Tribunal de Contas de União, do PGR e do próprio STF). Diante da decisão, foram interpostos agravos regimentais, que seriam julgados em 2017, se não tivessem sido retirados da pauta a serem retomados em 15/05/2020. Por meio virtual, o processo está previsto para terminar na quinta, 21.
[3] Gonçalves, Ana Maria Não é sobre você que devemos falar. In Biscoito fino e a massa. Disponível: https://www.geledes.org.br/ana-maria-goncalves-lobato-nao-e-sobre-voce-que-devemos-falar/
[4] Monteiro Lobato e o racismo. Revista Bravo. Edição 165 – Maio 2011 http://bravonline.abril.com.br/materia/monteiro-lobato-e-o-racismo#image=165-capa-racismo-1-g
[5] A Revista Geledes conserva uma memória importante de artigos sobre o tema: Dossie Monteiro Lobato. https://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/dossie-monteiro-lobato/
[6] https://revistaemilia.com.br/quando-a-afro-bibliodiversidade-le-monteiro-lobato/
[7] A proposta de construção de um Estatuto da Igualdade Racial foi originalmente oferecida pelo então deputado Paulo Paim, em junho de 2000. Apresentada como fruto do debate do movimento negro, a redação original do PL no 3.198/2000 reunia, em 36 artigos, propostas nas áreas da saúde, educação, trabalho, cultura, esporte, lazer, acesso à terra e à justiça. O trâmite no Congresso
[8] https://almapreta.com/editorias/o-quilombo/monteiro-lobato-um-pai-eugenista?fbclid=IwAR0qF5xrF8aT9WMKxe72O8k8JXF0ZnU-sMr_sp2sk7AJBIKyEqs42sKM9Xc
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