A democratização do acesso ao ensino superior foi muito mais do que apenas oferecer melhores possibilidades de avanço para aqueles que vieram de baixo. Ela também proporcionou uma oportunidade para aqueles que estão por cima aprenderem mais sobre o Brasil.
Por gerações, parte de nossas elites viveu sem conhecer o próprio país em que nasceram. Viveram sem ver o Brasil em sua essência. Com as universidades mais diversas, seus filhos tiveram, talvez pela primeira vez, a chance de se conectar com um Brasil real, de sentir e entender a realidade de uma nação muito mais complexa do que imaginavam.
No entanto, diante do susto de ver seus filhos obtendo o mesmo diploma que jovens de baixa renda, alguns pais começaram a buscar alternativas no exterior. Enviar seus filhos para obter credenciais em universidades renomadas fora do país tornou-se uma prática relativamente comum.

Essas instituições passaram a ser vistas como refúgios para preservar suas posições de status que, até então, pareciam inatingíveis dentro das fronteiras nacionais. E tais posições não são apenas um reflexo da riqueza inicial. A posse e a transmissão de capital vão muito além do dinheiro.
Como o sociólogo francês Pierre Bourdieu destacou, o capital também inclui os conhecimentos, os modos de comportamento, as conexões interpessoais e os gostos que são socialmente valorizados.
Quando um estudante branco de baixa renda chega a uma universidade, ele pode até trazer consigo talento e vontade, mas logo percebe que muitos dos colegas cresceram rodeados de livros, viagens e conversas que ele nunca teve. Ele não tem menos capacidade, mas terá que correr atrás de experiências que outros já possuem. E essa diferença, que parece pequena, cria uma dinâmica que exigirá dele muito mais esforço para alcançar os mesmos resultados.
Quando um negro da periferia tenta entender certas referências ou piadas no ambiente de trabalho, ele percebe que muitos ao seu redor compartilham experiências culturais ou gostos que nunca fizeram parte de sua realidade. Para ele, isso significa se adaptar a códigos sociais já estabelecidos, onde precisa ler o contexto e encontrar maneiras de se inserir, enquanto outros estão naturalmente à vontade.
Quando uma garota da favela decide sonhar grande, ela logo percebe que, ao contrário de tantos outros, não tem conexões que abrem portas. Ela tem talento. Ela tem determinação. Mas, enquanto alguns conseguem oportunidades por quem conhecem, ela precisa lutar ainda mais para ser, ao menos, notada.
Essas disparidades de vivências cristalizam o fato de que o capital não se resume ao dinheiro. Ele engloba tudo aquilo que contribui para solidificar a posição de um indivíduo na sociedade, moldando o acesso a oportunidades e o nível de influência que a pessoa exerce.
Frequentemente, outras formas de capital determinam os caminhos de maneira tão poderosa quanto o capital financeiro. Entretanto, suas diferentes manifestações estão interligadas em uma dinâmica em que cada uma reforça a outra, criando uma teia de poder e privilégio que se perpetua entre gerações.
O texto é uma homenagem à música “Cidadão”, composta por Lucio Barbosa, interpretada por Zé Ramalho.