Em 2025, a Marquês de Sapucaí, com suas luzes e cores, será palco de um verdadeiro aquilombamento, termo que hoje define o movimento de luta e de resistência do povo negro. Nove das doze escolas do Grupo Especial levarão para a Avenida enredos com exaltação a personalidades pretas, narrativas inspiradas em religiões como umbanda e candomblé e outros temas baseados no vínculo cultural e histórico de etnias africanas no Rio. Mocidade, Vila Isabel e Grande Rio serão as exceções no próximo carnaval. Enquanto a temática futurista foi a escolha da Verde e Branco de Padre Miguel, a Vila apresentará com Paulo Barros o enredo “Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece” e a Grande Rio mostrará os encantos de Belém do Pará.
A conjunção prevista para a Sapucaí em 2025 já suscita debates. Enquanto uns apontam alguma uniformização nas escolhas, outros defendem que as escolas têm em mãos diferentes recortes sobre religiões, personalidades pretas e um continente com múltiplas referências para explorar.
‘Excessiva temática ’
Ex-carnavalesco, que, entre outras escolas, se destacou pelos enredos bem-humorados da Caprichosos de Pilares nos anos 1980, Luiz Fernando Reis disse nas redes sociais que a “excessiva temática afro-religiosa” não o agrada: “Reconheço que o povo preto é legítimo mentor dessa festa, reconheço que toda a sociedade tem uma dívida enorme com o povo afro-brasileiro, mas reconheço também que tudo demais acaba sendo uma sobra”.
Ele avalia que a afinidade nos temas pode ter a ver com apostas no que deu certo com as últimas campeãs — Viradouro venceu o carnaval 2024 com “Arroboboi, Dangbé”, as serpentes que são objeto de culto na tradição africana, e a Portela conquistou o Estandarte de Ouro no mesmo ano com um carnaval inspirado no livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves.
“ Não consigo enxergar essa dita conscientização da cultura negra, vejo apenas como um modismo passageiro, visando seguir os passos da última campeã”, reforçou Reis no Facebook.
Leandro Vieira, carnavalesco da Imperatriz, discorda — e muito. Ele frisa que “o Oxalá da Imperatriz Leopoldinense não é o Logun-Edé da Unidos da Tijuca”:
— Muito desse tipo de argumentação parte da generalização daquilo que é lido como o universo artístico, social e religioso preto. Toda vez que ouço esse tipo de argumentação me vem à cabeça a atriz Elisa Lucinda dizendo que ainda hoje, com tantos anos de carreira e visibilidade, é confundida com a Zezé Motta. Lembro também de Milton Nascimento dizer algo parecido sobre ser confundido com o Djavan. Em sua fala, Elisa Lucinda deixa claro de onde parte esse olhar que dá invisibilidade às diferenças e os danos que resultam disso. Me parece que esse “temor” dos críticos parte do mesmo lugar — afirma Leandro.
O carnaval é notoriamente reconhecido como herança da cultura negra.
— Trazer muitas temáticas de negritude não deveria ser surpresa, já que as escolas de samba são uma manifestação cultural cuja origem é o povo pobre e preto do Rio. São as escolas de samba falando delas, de suas realidades, de suas ancestralidades, de seu pertencimento — observa o jornalista e escritor Leonardo Bruno.
Nos últimos três carnavais desde a retomada pós-pandemia, duas campeãs tiveram enredo afro (Grande Rio em 2022 e Viradouro em 2024), assim como três vencedoras do Estandarte de Ouro de Melhor Escola: Grande-Rio em 2022, Beija-Flor em 2023 e Portela em 2024.
Autor de 16 sambas-enredo defendidos pelo Império Serrano no carnaval, Aluísio Machado engrossa o coro dos críticos:
— Não sei qual será a sinopse do Império Serrano em 2025, mas se for afro não pretendo fazer mais. Isso cansa, até porque tem certos termos que nem os jurados, nem o público entende: jeje, ketu, nagô. É preciso um carnaval mais didático, popular. Ficar preso só em tema afro cansa — opina.
Enredos distintos
Escritor, professor de história e jurado do Estandarte de Ouro, Luiz Antonio Simas afasta a polêmica.
— Os enredos são muito distintos. A gente tem mania de encarar a África como uma singularidade que não faz sentido. Quando você analisa os enredos, vê a Imperatriz Leopoldinense com um mais ligado ao candomblé de ketu, associado a Oxalá. A Unidos da Tijuca vem para o Logun-Edé (de Oxum). Já a Paraíso do Tuiuti dialoga com o Brasil das africanidades com Xica Manicongo, que é completamente diferente dos outros dois — explica Simas. — Acho que as escolas de samba têm o papel de uma pedagogia popular. Então, essas narrativas que fogem à história oficial são muito importantes — enfatiza ele.
A Portela homenageará o ídolo da música brasileira Milton Nascimento e sua relação com Minas Gerais. Já a Beija-Flor prestará tributo ao diretor de carnaval Laíla, que participou de 13 dos 14 títulos da escola de Nilópolis e morreu por complicações da Covid em 2021. Almir Reis, presidente da escola da Baixada Fluminense, diz ter se habituado às críticas desde que Laíla comandava o carnaval.
— A Beija-Flor fez vários carnavais afro, falamos da importância do negro há muito tempo e apanhamos das outras coirmãs. “Ah, tudo deles é macumba”, diziam. E hoje, olha aí, que ironia! Mais de 80% vão falar de religiosidade, vão falar da macumba. Quando nós decidimos pelo Laíla, um dos maiores motivos foi seu protagonismo preto. Ele vinha lutando muitos anos por esse reconhecimento, por falar da religião, e era criticado — diz reis.
Sidnei França, carnavalesco da Mangueira, atribui à representatividade a principal intenção da Verde e Rosa no próximo carnaval:
— O que pesou para a escolha de um enredo voltado para a negritude foi a Mangueira ser uma escola preta, fincada no morro e que discute o que vive, que leva para o seu desfile e para a sua proposição argumentativa a realidade do seu povo.