Carnaval Politicamente correto

O rei momo, de turbante e com as chaves da cidade, anuncia à turba as regras do carnaval.

Reprodução/ Twitter

Por Lele Teles Enviado para o Portal Geledes

“carnaval não tem regras”, gritou um macho branco, heterossexual e libertino.

“esse ano tem”, retificou a voz adiposa e momesca.

e foi logo anunciando: “esse ano tá proibido ‘o teu cabelo não nega, mulata'”.

“vejo nada demais nessa música”, reclamou a descendente de escravizadores, escovando os cabelos com os dedos.

“e por falar em cabelo, olha a cabeleira do zezé, também tá fora”. continuou o momo, lendo uma lista que trazia no regaço.

“idiotas esquerdistas”, gritou o filhote da ditadura, cristão e heterossexual.

“gordo imbecil, lixo. nem no carnaval a gente pode zoar os gays?”, reclamou o homem branco de dorso nu e bombado.

“vamos criar um bloco com cordas e deixar esse balofo e essas feministas de fora”, sentenciou a mocinha.

“afinal, carnaval é transgressão, no carnaval pode tudo”. gritou o bombado, triunfante.

“pode tudo o cacete”, disse o rei de araque, “os negros e os gays estão a ser zoados o ano inteiro. transgressão, meu bom rapaz, seria, pelo menos no carnaval, não zoá-los”.

o momo ajeita a coroa de papelão na cabeça e prossegue: “e tem mais, esse ano não teremos cordas nem currais. que diabo de carnaval é esse onde o rico representa o papel de rico e o pobre está sempre travestido de pobre?”

a turba reclamava, da multidão ouvia-se choro e ranger de dentes.

indiferente, o rei da festa prossegue: “acabou o carnaval chiclete com banana que, como sabemos, era chiclete pros brancos e banana pros pretos”

ao meu lado, a mocinha murmurou que o carnaval tava ficando sem graça, “é um tal de confete ecológico, purpurina despurpurinada…”

come prosseguiu: “também tá liberado a turma da capoeira e do boxe usar os corpos de jovens brancos e embriagados como sparring. pode descer a porrada na molecada, tomar o iphone e limpar os bolsos”.o eu não lhe dei ouvidos, ela gritou: “por que o senhor não vai puxar carnaval em cuba, sua baleia comunista, safado?”

e encerrou, murmurando para os que estavam a seu redor: “onde já se viu, esses complexados já botaram roupa até na globeleza, que esse ano tava até mais bonita e menos preta”.

“ok”, disse o rechonchudo monarca, do alto do trio elétrico: “liberemos as marchinhas canalhas, mas vamos liberar também a dedada na bunda das meninas e o beijo à força com puxão de cabelo”.

e prosseguiu: “também tá liberado a turma da capoeira e do boxe usar os corpos de jovens brancos e embriagados como sparring. pode descer a porrada na molecada, tomar o iphone e limpar os bolsos”.

“aí, não. aí não vale”, gritou uma coroa siliconada, ao que foi reverberada pela turba que não sabe sambar.

“com mil diabos”, disse o rei momo, “quer dizer que na condição de opressor vale tudo no carnaval, mas na condição de oprimido nada vale?”

silêncio geral.

“toca essa porra pra frente e deixa como tá”, disse o momo ao motorista do trio elétrico.

e a folia prosseguiu com as mesmas regras de sempre.

no carnaval brasileiro não tem essa de máscaras nem de fantasias: rico é rico, pobre é pobre, branco é branco, preto é preto e a polícia sabe exatamente em quem enfiar porrada.

há muitas regras no carnaval: há regras nos camarotes, na marquês de sapucaí, nas cordas baianas…

pode ficar nua, mas com tapa sexo.

só pretos empurram carros alegóricos.

os pretos seguram as cordas, os brancos dançam.

pretos seguram o isopor, brancos bebem.

é trio elétrico? põe os negão na cozinha, tocando pandeiro.

microfone na mão, comandando a massa, só brancos e brancas.

o nosso carnaval, com suas fantásticas fantasias e seus incríveis carros alegóricos, tem nada de transgressão, a imagem é clara:

brancos em cima, pretos embaixo.

palavras sapienciais.

 

 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Comitê Quilombola da 2ª Marcha das Mulheres Negras é lançado em Brasília

Mulheres quilombolas de todo o país lançaram, nesta terça-feira...

Governo encara o privilégio tributário dos muito ricos

Mais que cumprir promessa da campanha de 2022 ou...

Google concorda em pagar US$ 28 milhões em processo por preconceito racial

O Google concordou em pagar US$ 28 milhões (cerca de R$...

Renda de pessoas negras equivale a 58% da de brancas, mostra estudo

A renda do trabalho principal de pessoas negras correspondia,...

para lembrar

Carlos Lessa: ‘cenário político é inquietante’ –

"O cenário político brasileiro é inquietante", diz Carlos Lessa Por: Eduardo...

Marisa Letícia tem morte cerebral confirmada após AVC

Família autorizou os preparativos para a doação dos órgãos...

Jornalismo e Sensacionalismo : Entrevista – Wanda Chase

Fonte: Fazendo Jornalismo- Por Leia Celestino & Elaine Adriana...

Grandes empresários abandonam Trump por vacilar ante racismo

Presidente dissolve dois órgãos consultivos de empresários depois de...

Geledés – Instituto da Mulher Negra se solidariza à Ministra Marina Silva

Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização fundada e liderada por mulheres negras, se solidariza com a ministra do Meio Ambiente e Mudança do...

STF forma maioria para validar lei que expulsa empresa por escravidão em SP

O plenário do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta quarta (19), para validar a Lei Paulista de Combate ao Trabalho Escravo, sancionada e regulamentada...

Alcântara é Quilombola! Em sentença histórica, Corte Interamericana condena Brasil por violar direitos quilombolas e determina titulação do território

Na última quinta-feira (13), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou que o Estado brasileiro é responsável por violar os direitos das...
-+=