Estimada loucura
Já me acostumei em sentir seu corpo, seu cheiro por perto, mas hoje, apenas hoje, imploro: Deixe-me ter tempo de sentir saudade! Por breves instantes, deixe-me, por favor! Saia! …. Loucura, antes de partir, posso te perguntar? Por que minha cor me dói tanto? Os pássaros pretos sofrem mais que os coloridos? Ah, loucura… agora quero que fique. Há muito silêncio aqui. Tenho perguntas pra mim, pra você, pro mundo… mas ninguém responde. Me diz, se a bala da dor te acerta também, todo dia, pela cor de uma pele?
Diz, o que você sente quando retiram a humanidade de uma garota…uma garota igual a mim, colocando-a a venda, como um objeto qualquer? Não rasga o humano que há em você? Humano… você nem é humano, Loucura. Eu sou! E fico em estilhaços, não consigo me juntar! Não, Loucura, não vá, não me deixe com este silêncio pesado, eu ainda tenho perguntas.
Suplico, fala pra mim como não apodrecer por dentro, quando mancharam de vermelho o rosto preto de João Pedro? Como? O pai… chovendo, por dentro e por fora, debruçado no que restou do filho, no que restou do sonho do filho. Meu Deus, ele queria fazer Direito, eu também quero fazer Direito, Loucura. Aquele tiro foi longo, atravessou Joãozinho, o pai, a mãe, que disse: “Eu não pude dar um abraço nele”, e chegou até meu corpo. Ele matou tanta gente, tantos sonhos, ele matou tudo. Ah, loucura, agora te entendo: Você me que bem, eu sei, só os loucos são felizes! Mas sabe, eu ainda tenho perguntas. Como suportar a imagem de um homem, sendo esmagado na cabeça, por outro homem? O que estava sob os pés, foi o corpo, os saberes, a tradição, a humanidade do negro? O que ele queria pisar?
Sabe, Loucura, eu senti vontade de gritar, gritar muito, porque aquilo doeu. Porque, por dentro, não consigo mais aguentar. Eu não consigo respirar… Ninguém consegue respirar este ar podre, com tanta navalha retalhando a alma e o corpo negro. Até onde? Até quando? Loucura, Eu só tenho 15 anos e tenho que sair com a arma engatilhada na voz, para combater o racismo. Eu queria apenas sair… Apenas sair.
Você consegue respirar Loucura, sem sentir o cheiro dos corpos negros jogados ao mar, lançados ao matagal, deixados no meio da rua? Consegue? Não há respostas, não é Loucura? Ninguém me responde. Sabe, ontem uma colega de sala menina preta, que engravidou muito cedo de um rapaz branco, contou-me uma história tão terrível, que por uns segundos eu me vi no corpo dela. Contou-me que estava em um metrô com a filha e escutou uma conversa entre duas mulheres brancas. Uma disse: – Nossa, se eu tivesse um filho negro, eu jogaria no lixo.
A outra complementou: – Deus me livre, um macaco! Ainda bem que os filhos puxam ao pai. Minha colega falou, com a voz embargada, que sentiu vergonha e só queria sair dali. E falou baixinho para mim: – Você não imagina como isso dói. Falou de olhos baixos e eu fiquei absolutamente calada. Ela sentiu vergonha de ser o que era, Loucura; a fizeram sentir assim. Fui triste para casa e chorei muito, escondido dos meus pais. As pessoas são cruéis demais, Loucura! Eu preciso lutar contra isto, pelos que sofrem calados, pelos que sentem o peso do racismo no ombro e se envergam cada vez mais emudecidos.
A dor retira a voz, você sabia Loucura? Mas, eu ainda quero gritar para os que pensam que tudo isso é vitimismo: Vista minha cor e sinta as feridas que fazem dentro da gente; vista minha cor e experimente a aflição de uma mãe, todos os dias com a possibilidade de perder um filho para uma bala, que sempre encontra corpos negros; vista minha cor e vá pra escola criança ou adolescente para você ver como é se sentir um verdadeiro lixo e até se questionar se é gente mesmo; vista minha cor e tente sonhar com o amor para ver quantas vezes sairá ferida; Vista minha cor e tente apagar as tatuagens que o racismo faz na sua existência. Vista minha cor, meu corpo, meu cabelo e tente sonhar, tente não doer, não ter medo, permanecer vivo. Tente!
Ah Loucura, ainda são tantas as perguntas, são muitas. Tudo isto corrói meu íntimo. Mas, você só me dá o silêncio, como eles. Você é igual a eles, só quer meu corpo, estendido em devaneios. Pode ir, não quero senti-la por perto. Não vou enlouquecer. Meu corpo ainda luta, mesmo no luto, ele ainda luta. Pode ir, deixe-me só. Deixe-me só!
Júlia, 15 anos hoje e mais
tantos outros no futuro, para sonhar
Texto: Sandra Liss
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.