Movimento Negro e movimento antifascismo

“Até que a filosofia que torna uma raça superior

e outra inferior, seja finalmente permanentemente

 desacreditada e abandonada, haverá guerra”

Bob Marley – War (canção)

Devido os últimos acontecimentos políticos no Brasil e EUA, movimentos antirracistas e antifascistas se levantam com a defesa de uma sociedade livre do racismo estrutural e da sombra do autoritarismo. Medidas enérgicas protagonizadas pelo movimento negro nos EUA reverberaram mundo afora e se somaram as vozes que já se erguiam no Brasil contra as operações policiais nos morros e favelas. 

Diante da movimentação, gerou-se um debate em torno de uma possível apropriação da onda antirracista por parte da esquerda brasileira, através do movimento antifascista que vem se espalhando pelas redes sociais e em manifestações de rua.

Quero falar um pouco de experiências envolvendo a temática do fascismo no passado, de algumas considerações sobre Estado e sociedade e finalizar falando dos movimentos recentes no Brasil.
Ao falar de fascismo, vale apena lembrar-se do imperador Etíope – Hailé Selassié, da dinastia salomônica, o maior símbolo do movimento rastafári e um dos fundadores da Organização da Unidade Africana (OUA) hoje conhecida como União Africana (UA). Foi ele quem alertou a Europa sobre a ameaça do fascismo. A Etiópia nunca foi colonizada, mas foi ocupada por Mussolini e os militares fascistas durante cinco anos. Em 1974, o Imperador pró-americano foi oficialmente deposto por uma junta militar de base marxista-leninista (Derg). 

Selassié é uma figura que divide opiniões, foi apoiado e duramente criticado por Marcus Garvey e organizações internacionais de direitos humanos. De qualquer forma, não podemos ignorar a importância histórica que representa frente à cooperação pan-africana e movimento rastafári. A canção War do Bob Marley foi feita em sua homenagem, a letra guarda incrível semelhança com o discurso proferido por Salassié na Liga das Nações (atualmente ONU).

Outra experiência histórica que não podemos ignorar veio do Partido dos Panteras Negras, que através de uma coalizão estratégica intitulada “Arco-íris” criaram o “Comitê Nacional de Combate ao Fascismo” como tática de oposição a Guerra do Vietnã e questões pontuais do cotidiano de repressão policial.

A necropolítica, definida por Mbembe como a política da morte, gera desgaste nas relações entre sociedade, Estado e mercado. O descontentamento das relações de poder não é um fenômeno do momento, mas um dado inerente a um sistema reprodutor de miséria e desigualdade. Tal descontentamento ganha tempero especial frente à pandemia da covid-19 e governos de ultradireita, tanto aqui quanto nos EUA. 

A aposta no aparelho repressivo do Estado como forma de corrigir a ausência de políticas sociais, tenta legitimar a injustiça, tirando a responsabilidade social e jurídica do Estado e transferindo-a individualmente aos grupos historicamente excluídos, para então, fazer com que os demais, considerados privilegiados, naturalizem um Estado de exceção, que mantém sua condição de privilegiado à custa de quem sempre teve seus direitos negados. Há tempos as lutas sociais protagonizadas por movimentos de pretos (as) questionam a existência de um Estado policial que mata e encarcera, como resquício de uma abolição incompleta. Isso tudo não é pouca coisa.

A morte violenta de George Froyd em Mineápolis, amplamente divulgada nas redes sociais, fez com que o movimento de negros norte-americanos e simpatizantes, saísse do isolamento social, mesmo o país sendo, até o momento, o mais atingido em todo mundo pela pandemia.

Alguns argumentam que a campanha antifascista está de certa forma roubando o protagonismo da campanha antirracista, ou relegando um papel secundário a um tema tão importante. Esse receio não pode ser ignorado, uma vez que a esquerda branca tem um histórico de dificuldade para reconhecer o racismo como sendo estrutural no mundo capitalista. Malcolm X já chegou a afirmar que “não existe capitalismo sem racismo” e muitos ainda ignoram.

Tenho inúmeras críticas à esquerda brasileira, mas para ser honesta, não dá para associar esse levante antifascista à esquerda tradicional brasileira. Claro que qualquer movimento antifa é de esquerda, isso não se discute.

Um ponto importante é que esse levante antifascista foi organizado pelas torcidas de futebol e não por partidos ou organizações da esquerda tradicional. Mesmo as torcidas não se autodeclarando como antifa, automaticamente foram associadas. O lema da última manifestação foi inclusive uma frase de Martin Luther King “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. Interpreto como uma clara referência em relação às pautas antifascista e antirracista.

Dezesseis dias antes das manifestações nos EUA pela morte de #GeorgeFloyd a torcida do Corinthians já estava saindo na mão com bolsonaristas na Av. Paulista. Não foi um “aproveitamento da onda” de lá. Sejamos justos. Acredito que as manifestações de lá, fizeram com que de alguma forma as daqui, que já estavam ocorrendo, ganhasse maior aderência. As daqui, já vinham pautando questões raciais e sociais envolvendo as favelas, o descaso com a pandemia e o ataque a jornalistas (vejam os vídeos, faixas e entrevistas disponíveis). No último ato, um dos manifestantes chegou a falar em memória das vítimas da favela de Paraisópolis, outro enfrentou bolsonaristas com a camisa do Malcolm X. A torcida organizada da gaviões é muito mais preta e perifa que muito movimento da esquerda tradicional que se diz popular por aí.

Não vejo isso como algo ruim, muito pelo contrário. Quanto mais pessoas se identificando com uma bandeira que vai contra movimentos de extrema direita, melhor. Por vezes esses movimentos são abertamente racistas, alguns inclusive apoiando supremacistas norte-americanos e europeus. Afinal, são através desses movimentos de extrema direita que os racistas de carteirinha se manifestam. 

De qualquer forma, o ponto é que Bolsonaro como uma obra medíocre do fascismo alá Brasilis, representa uma ameaça direta ao país como um todo, e principalmente para nós pretos (as). Sabemos que as medidas autoritárias do desgoverno, bem como o completo descaso frente à pandemia, vêm atingindo principalmente os indígenas, quilombolas e pretos (as) da favela. 

Falar de fascismo também é falar sobre militarismo. E essa é uma pauta muito cara para o movimento negro de qualquer país. Não atoa reivindicamos a memória dos que foram assassinados em operações policiais. Não atoa a democracia, na prática, é privilégio de poucos.

Vejo o movimento #antifascismo como aliado do #antirracismo, não como rival. 

Esse antifascismo só será legítimo se também for levado e pautado por nós. Nas ruas já vemos isso acontecer, mas sempre será necessário reafirmar. A história nos mostra que o fascismo nunca esteve do nosso lado, muito pelo contrário.
Sejamos antifascistas e antirracistas, por uma questão prática de humanidade, inteligência e sobrevivência.

 

Fonte: 

VISENTINI, P. G. F. . As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2012. v. 1. 187p .

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47203244

https://jacobin.com.br/2019/12/os-panteras-negras-os-jovens-patriotas-e-a-coalizao-arco-iris/

https://www.lavanguardia.com/historiayvida/20200207/473209441038/haile-selassie-etiopia-italia-fascismo-mussolini-barcelona-sociedad-de-naciones-aviacion-legionaria-bombardeos.html?fbclid=IwAR3h1binOGrpnU7e4XsUO4rPL5ZdTmaMQ98cULaKC1Vf6U9mw0i70865CQw


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