O colar de búzios: religião, gênero, preconceito e ancestralidade na vida de uma quilombola

Prezadas e prezados leitoras/es do Geledés, mais uma vez venho compartilhar um texto que acredito e espero sinceramente que seja apreciado por vocês, pois é compartilhando experiências que nos fortalecemos.

Pois bem! Nasci e fui criada no que chamamos de “um lar evangélico”. Aprendi, desde cedo, com meu pai e mãe, tia e tios e avós o hábito de ir à igreja, agradecer a Deus antes das refeições, orar antes de dormir e outros ritos religiosos. Nós íamos a todos os cultos: domingo, segunda, quarta e nas consagrações¹ de sábado de manhã. Enfim, um exemplo de família cristã evangélica.

Mas, nem tudo eram flores. Tivemos uma doutrinação que considero severa e irracional: “tudo era pecado!” Ouvir músicas que não fossem evangélicas era pecado, pintar as unhas (especialmente de vermelho) era pecado (lembro-me de minha tia dizendo que pintar as unhas de vermelho era “coisa de pombagira”, segundo ela “um tipo de demônio que agia nas mulheres para atentar os homens”), as mulheres cortarem os cabelos era pecado, raspar os pêlos (axila, sobrancelha, pernas, virilha) era pecado. Você tinha que pensar o tempo todo em Deus. Isso sem falar nas roupas que deviam ser assim: saia até a altura dos joelhos, mangas de blusas cobrindo todo o ombro ou os braços, nada que marcasse o corpo da mulher. Calça comprida? Nem pensar! Aliás, as regras eram bem mais severas para nós, mulheres, do que para os homens. Fenômeno perceptível em outras religiões onde o corpo da mulher é palco da dominação irracional masculina. Lembro-me que, quando crianças nós éramos chamadas à atenção pelo meu avô se brincássemos com meninos, segundo ele “menina brinca com menina e menino brinca com menino”- assim ele falava para nós. 

Eram tantos absurdos que até canso de lembrar. Muitos deles já foram superados por algumas denominações, mas continuam impregnados na mente de muitos/as.  O que eu pretendo discutir aqui é a questão de como o fundamentalismo cristão, contribuiu para a introjeção de vários medos e atitudes preconceituosas em minha consciência. Contribuiu, também, para que negássemos e silenciássemos nossa ancestralidade africana e quilombola. Neste sentido havia o preconceito à militância do movimento, pois tal atitude era relacionada ao pecado da rebelião. 

Quando éramos crianças (eu, minhas irmãs e primos), ouvíamos um burburinho dos adultos falando sobre certa descendência africana e escrava. Mas quando perguntávamos eles/elas desconversavam dizendo “deixa isso pra lá”, “não é nada não”. Como se fosse algo para ser esquecido. Especialmente meu avô, não gostava que minha avó e minhas tias comentassem isso perto de nós, pois para ele nós precisávamos ser protegidas dessa ancestralidade que lhe causava sofrimento e dor, pois trazia à sua memória lembranças de um tenebroso passado de expropriação de seu lugar de origem: a Rasa. Mesmo assim, havia histórias que minha avó se permitia nos contar como a de meu bisavô Aspino, que ao voltar com seus irmãos do trabalho de arrendamento nas roças dos fazendeiros, se deparou com um boi muito bravo. Seus irmãos correram, mas ele ficou e enfrentou o boi pegando-o pelos chifres e acertando murros em seu focinho até conseguir derrubá-lo. Eu lembro que sempre gostava de ouvir essa história.  Também ouvia que minha bisavó Eugênia, era parteira e rezadeira.  Bibiana, mãe de meu bisavô Aspino, junto com a minha bisavó Eugênia, trataram das feridas ocasionadas pela luta com o boi no corpo de meu bisavô. Elas sabiam as ervas adequadas para qualquer tratamento. Também ouvíamos muitas histórias sobre Tertela, irmã de Bibiana, que era muito valente, lutava capoeira e não baixava a cabeça para ninguém! Essas histórias me fascinavam, especialmente quando contadas por minha tia Lúcia (irmã de meu avô), que aprendera a ser parteira e rezadeira com sua mãe, Eugênia. Mas isso só era dito entre família. Os modos de viver dessas mulheres, minhas ancestrais, não se encaixavam no modelo de mulher submissa pregado pelo fundamentalismo cristão no qual fomos criadas. 

Tia Lucia nos mostrava “como dançavam os escravos”. Mas até aquele momento não estabelecia nenhuma ligação identitária com a escravidão. Quando, na escola, ouvia falar de escravidão, era sempre numa forma depreciativa na qual os/as negras/os eram passivos a ela. Quando, na verdade as próprias histórias que estavam em nosso seio familiar diziam o contrário. Mas nos meus tempos de escola não havia lugar para enquadrar esta memória nos currículos escolares.

Eu tinha medo de tia Lúcia por causa de seu jeito bravo de falar e de seus cascudos inesperados. Mas era uma mulher que quando te olhava nos olhos, te fazia estremecer da cabeça aos pés. Uma mulher de bravura incontestável. Minha tia faleceu no final dos anos 90. Mas deixou um grande legado para nós: o da resistência. Tia Lúcia conhecia os segredos da natureza!

Eu aprendi a valorizar a memória de meus/minhas ancestrais, graças a luta do povo negro que fez chegar na universidade a disciplina de Relações Étnico-Raciais. Foi a partir daquele momento com a professora Maria das Graças que passei a refletir e adquirir consciência da minha situação social enquanto mulher negra, pobre e quilombola. Desse momento em diante eu respiro luta e onde eu estiver eu clamo por justiça em memória dessa ancestralidade que está por tantas décadas invisibilizada.

Mas o que tem a ver o colar de búzios com essa história toda? É que depois de décadas em silêncio, vovô e seu irmão mais velho, meu tio Manoel, começaram a me falar dos trabalhos que tia Lúcia realizava de curar as pessoas, encantar animais e jogar búzios. Eu comprei este colar para simbolizar a memória de minha tia a quem aprendi a valorizar os seus conhecimentos que foram rechaçados pelo fundamentalismo religioso impregnado em mim e minha família. Como disse o teólogo Leonardo Boff em entrevista ao pastor Henrique Vieira: “O fundamentalismo encaixa as pessoas, não tem alegria… Anestesia os afetos. Torna a experiência religiosa amarga, bélica. Retira a poesia da alma. Motor de indiferença diante do movimento.” A partir dessas palavras posso concluir os danos psíquicos que esse fundamentalismo ocasionou em mim e minha família, fazendo com que enxergássemos as pessoas de religião de matriz africana como “seguidores do diabo” e, portanto, nossos inimigos. 

Ainda estou em fase de autorrecuperação, como diria bell hooks. Aos poucos, através da imersão na leitura de mulheres negras, na busca pelo conhecimento, tenho me libertado de todas essas opressões machistas e racistas no meu ser. Não é um processo fácil, é difícil e doloroso. Algumas vezes requer humildade para se desfazer de idéias tão fortemente impregnadas na consciência. Mas é na luta pela reparação histórica dos quilombolas que também encontro forças para me desconstruir. Na linguagem evangélica, eu diria que estou nascendo de novo. Ressuscita em mim uma nova mulher consciente de seu lugar e pronta para “erguer a voz” em situações de injustiça contra o povo negro e quilombola. 

Mas, para a velha Gessiane, apenas olhar para um adorno de conchas de búzios, já era motivo para pedir perdão a Deus e dizer o famoso “tá repreendido”, devido à associação que o pensamento fundamentalista fazia com o maligno. As conchas de búzios são da natureza, criação de Deus e, por isso usarei esse colar em memória de todas essas mulheres corajosas que me antecederam. Nunca mais terei vergonha de vocês. Onde quer que vocês estejam, saibam que eu as amo e sinto vocês me dando forças a cada desvelamento das experiências de vocês. Cada gota de suor, lágrima e sangue derramados será lembrada. São vocês que me ajudam a compreender a minha condição histórica nesse mundo injusto. Vocês são a minha essência, a força que me motiva a lutar. Continuarei a luta de vocês! 

Algum ou alguma fundamentalista que ler esse texto, que você possa refletir profundamente sobre o que é o amor e respeito às nossas origens. Isso não é pecado é LIBERDADE.

Salve Lúcia! Salve Eugênia! Salve Bibiana! Salve Tertela! Salve Madalena!

 

¹ Consagração é uma reunião de oração geralmente dirigida por mulheres.

 

Leia Também:

Uma quilombola brasileira em Harvard: reflexões sobre estigma e autoestima


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

Preto é culpado, mesmo quando prova o contrário

Alberto Meyrelles de Sant'Anna Júnior, Yago Correia, Vinícius Romão...

Crimes raciais são 68% dos casos em delegacia especializada em SP

Representatividade desses crimes cresce há três anos no Decradi,...

Protagonista negro no novo ‘Star Wars’ gera reação racista nas redes

Fãs racistas criaram um movimento para boicotar o novo...

‘Mulher me ofereceu moedas’, diz bailarina vítima de preconceito em Natal

Bailarina e pesquisadora, Silvia Alves desabafou em uma rede...

para lembrar

Campanha nacional de combate ao racismo é lançada

A Contracs e diversas entidades se uniram à CUT...

“Se Deus vier que venha armado”: entre a arte e a realidade

Primeiro longa-metragem do diretor Luis Dantas retrata violência que...

Diário de Notícias denuncia possíveis crimes de racismo

por Pedro Tadeu O Diário de Notícias vai...
spot_imgspot_img

Juízes não seguem o STF e barram cotistas em concursos de universidades com três vagas ou menos

Instituída há dez anos, a lei que reservou a negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos ainda enfrenta obstáculos para ser aplicada em...

Transplante bem-sucedido é exemplo para candidatos

O Rio de Janeiro inteiro, dor e delícia, tragédia e compaixão, coube na saga de dona Maria Elena Gouveia por um fígado. Moradora de...

Brasil: Relatório sobre Justiça Racial na Aplicação da Lei

Este relatório contém as conclusões do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para o Avanço da Igualdade e Justiça Racial na Aplicação da Lei (EMLER,...
-+=