Cheia de Delicadezas

Camila Ferreira - Arquivo Pessoal

Certa vez ouvi como resposta “ela é cheia de delicadezas”. Um jeito disfarçado de dizer “ela e suas loucuras ou intensidades”.

Adorei, certamente, o significado que dei e não a intenção dada. Foi então que, daquele dia em diante, passei a atribuir parte do meu comportamento como “cheia de delicadezas”.

Na entrada do ano de 2024 essa foi uma lembrança que ecoou dentro de mim, me levando para parte do meu processo de elaboração, que é a escrita.

A palavra, para mim, é corpo.

Corpo é movimento.

Movimento é energia.

Energia é Axé. 

Escrever num dado momento é desenhar os afetos em palavras para fazer circular o axé que habita dentro de mim. Aqui estou a escrever e contar um pouco dessas delicadezas.

Os intensos, como eu, vivem 1 ano em uma semana.
Se encontramos o que desejamos, viveremos a experiência do encontro, aí somos tomados pelo desejo, luxúria, tesão, medo, insegurança, ciúmes, frustração, amorosidade, entusiasmo, decepção, alegria, ansiedade, ternura, simpatia, raiva, vergonha.

Caso essas emoções e sentimentos não sejam reconhecidas, entendidas e acolhidas, elas agem de forma autônoma, como fios desencapados quando se chocam, causando um curto-circuito no sistema.

Que fique claro que, quando me refiro a encontro, são os mais variados tipos, desde amorosos quanto com um livro de ficção científica. Tudo é sentido na minúcia dos instantes e muitas vezes na fração dos segundos.

No agora, é importante que eu entre no olho do furacão que, ao contrário do que pensam, não há movimento, a corrente forte de ar fica nas paredes do furacão e no meio é um vazio e é nesse oco que preciso lembrar, das minhas delicadezas, que às vezes se perdem no flow do encontro.

Desde pequena minha mãe me chamava de Cacilda Becker, quando cresci e entrei para o teatro descobri que foi a grande dama do teatro nacional, conhecida pela forte veia dramática em cena, mas foi ouvindo o ator Walmor Chagas dizer “ela era uma espécie de chama, ela queimava, uma labareda humana, uma impermanente ebulição” que me entendi por Cacilda.

Aquecer a ponto de não queimar para machucar, arder a ponto de não enlouquecer, inflamar a ponto de não explodir, torrar a ponto de não chamuscar, carbonizar a ponto de não incinerar, é uma equação não lógica, não racional e nem linear que faço há 43 anos e nem sempre a conta é exata, às vezes queimo, incendeio, exalto, incito e esquento, machucando a mim e ao outro. Nunca por intenção de ferir, apenas fugiu, escapou ou eu não quis impedir que saísse das fronteiras emocionais que tentei traçar.

Quem me vê de fora, me adjetiva: exagerada, dramática, dá importância demais, excessiva, melindrosa, complicada, o mais falado é “complexa” ou “menos, Camila, bem menos”.

Por outro lado, os mais generosos, dizem potente, voluptuosa, ousada, atrevida, profunda, intensa, exuberante, viva, quente, ativa, tenho direito até a metáforas, ventania ou queda d’água,    

No final, o que tudo isso significa?

Usando a física, posso dizer que todas as experiências com relevância e valor inestimável que atravessam meu corpo tem um impacto de dimensão quadridimensional, ou seja, eu sou um mini cosmo e para calcular os efeitos das vivências é preciso ter propriedade e expertise de todos os componentes que fazem parte do meu sistema.

Isso exige de mim disposição, generosidade, escuta e vontade, afinal sou eu que faço os cálculos com a ajuda da terapia, orixás e amigos. Não transfiro essa tarefa ao outro, mas para conviver comigo ou quando esse outro me atravessar, é preciso saber dessa equação, porque vai ajudar bastante na coabitação.

Hoje me recupero um pouco mais rápido das consequências das experiências, afinal são muitos anos de análise para saber meu funcionamento, mas não sou o alecrim dourado, ainda que saiba, não estou imune, de me perder no meu próprio labirinto ou no meu infinito particular, como define Marisa Monte

Mas hoje já possuo o fio de Ariadne para conseguir sair.

E aí qual de vocês também é cheia de delicadezas?


Camila Ferreira – Cientista/Legista da vida e da alma. Terapeuta Transversal com fundamentos da teoria junguiana e filosofia iorubá. Supervisão Clínica. Docente dos Conceitos Junguianos. Arte Educadora. Atriz. Diretora teatral


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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