Cidade e Racismo: Corpos Negros no carnaval de Salvador

O cordeiro é uma figura fixa e característica do Carnaval de Salvador. Os cordeiros e as cordeiras são responsáveis por desenvolver um trabalho muito específico de segurar e conduzir a corda que separa os foliões que pagam o bloco em volta do trio elétrico daqueles que não pagam, chamados foliões pipoca. Cordeiros e cordeiras formam o limite físico e móvel que separam esses dois públicos ao longo do circuito.

Enviado por Apoena Ferreira via Guest Post para o Portal Geledés 

Ao chegar aos circuitos da folia e olhar furtivamente um grupo de cordeiros na concentração do bloco, a impressão que se tem é que estão colocados improvisadamente num serviço improvisado, onde se amontoam nas ruas de forma também improvisada para sobreviver trabalhando aos sete dias oficiais de festa. Formada unicamente pela população negra, a massa de cordeiros e cordeiras são tudo e nada para essa estrutura de carnaval de Salvador.

Existem trabalhos fixos desenvolvidos exclusivamente para o Carnaval, dos quais devido sua identidade com a festa se pressupõe outro tipo de tratamento. São várias as ocupações fixas que dado o descaso e tamanha indiferença parecem ser improvisadas: as de cordeiros, vendedores ambulantes de bebidas, adereços e guloseimas, os catadores e catadoras de latinha e até mesmo os moto-taxistas e motoristas rodoviários. Apenas parecem improvisadas, mas são esperadas e planejadas para que aconteçam.

Duas situações geradas pela falsa ideia de ocasionalidade dos trabalhos fixos durante o carnaval são devastadoras para a população negra: a primeira é que ajuda a desqualificar os trabalhadores e trabalhadoras ao afasta-las drasticamente de direitos trabalhistas – trabalham a qualquer hora do dia, em condições insalubres – e aproxima-los cada vez mais da ilegalidade, ainda que estejam desenvolvendo trabalhos legais e necessários pra o momento. A segunda é que essa falsa ocasionalidade é institucionalmente produzida. Em diversas situações as instituições vêm reforçando posturas de descaso contra essa população e moldando uma estrutura que perpetua o carnaval de Salvador cada vez mais elitista e segregador. Seja pelos governos ditos de esquerda seja pelas propostas mais neoliberais, Governo do Estado e Prefeitura se dividem para administrar o carnaval negando a existência desses grupos e precarizando ainda mais suas vidas. Se para alguns não cabe ao Estado (nas esferas municipal e estadual) a responsabilidade com esses trabalhadores – uma vez que o serviço prestado é privado – com as demais instituições privadas a irresponsabilidade é igualmente perversa. O circuito de carnaval se constitui mais uma vez palco de resistência para a população negra na cidade que vem sendo gradativamente expulsa.

A produção e reprodução do espaço urbano é sobretudo um reflexo dos anseios daqueles que detém o poder político. A cidade, palco indissociável de produção e reprodução de capital traz os contrastes próprios que essas relações representam. A falsa desordem que assola as grandes cidades é na realidade a mais perfeita ordem que mantem muito bem organizados negros, brancos, pobres, ricos e desafortunados cada qual em seu lugar. Os negros na cidade ocupam as piores profissões, as piores moradias e sobrevivem da maneira que dá. Durante todo o ano são os vendedores ambulantes que ofertam bugingagangas(chinesas) nas passarelas do Lelé por toda a cidade, são aqueles que fixam pontos na frente de colégios, universidades, estações e paradas de ônibus levando lanches e frutas, são também os mesmo que lotam as filas dos ônibus e metrô na volta pra casa, são aqueles e aquelas cujo direito à educação e à saúde são cerceados. Não têm tempo ao direito à cidade tão reivindicado pela classe média e mal conseguem ter direito à sua propriedade… eles e elas são ainda aqueles e aquelas que perdem suas casas construídas nas encostas, logo após o carnaval, porque sempre após o carnaval as águas de março fecham o verão…

É evidente que a cidade se relaciona com esse grupo de maneira hostil. Os cordeiros são grandes conhecedores da cidade, estão sempre nela, dela se alimentam, habitam e em serviços diversos se ocupam para garantir as condições básicas de sua existência durante o ano. Os cordeiros se preparam para o carnaval e a cidade se prepara para os cordeiros. Um conjunto de mecanismos e atividades se aperfeiçoam durante todo o ano para garantir a reprodução da estrutura do carnaval.

A alienação da força de trabalho transforma a força motriz da estrutura do carnaval em mera engrenagem. O trabalho informal, forte característica de Salvador, tornam os trabalhadores sempre disponíveis para empregar sua força de trabalho durante o carnaval, disponíveis a trabalhar a qualquer hora do dia, ganhando qualquer valor, sem o mínimo de cuidado com questões sanitárias e atribuindo à responsabilidade individual as tarefas de segurança com seu próprio corpo, deslocamento, e cuidados com a insalubridade do ofício.

Mas para aqueles que em dias normais não dedicam seu valioso tempo se debruçando sobre questões de sobrevivência desse tipo de população, o que os levaria a pensar sobre a questão justamente para o carnaval? Absolutamente nada. Não se tem a população negra como foco de estudos praticamente nunca. O Urbanismo com sua larga influencia eurocêntrica, assim permanece até os dias atuais. Isso é preocupante justamente porque mais de 80% da população brasileira mora nas cidades (IBGE, 2010) e porque mais da metade (50,7%) da população total se diz negra (IBGE, 2010), ou seja, há muitos negros e negras sobrevivendo de qualquer maneira nos grandes centros urbanos e sobretudo na cidade mais negra do país.

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