Classe trabalhadora negra entre o rural e o urbano (1920-1930)

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Thompson Clímaco

Vamos falar sobre a classe trabalhadora negra entre o rural e o urbano no período entre 1920 a 1930.

A microrregião Sul Fluminense obteve grande destaque na produção cafeeira nacional no século XIX e um dos principais motivos desse sucesso foi a grande concentração de mão de obra escravizada. Barra Mansa faz parte dessa região do Vale do Paraíba. Porém, boa parte das produções sobre o município se concentram nas questões políticas, sociais e econômicas do período escravista e no processo de consolidação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) na década de 1940 em Volta Redonda (à época 8º distrito de Barra Mansa). Pouca atenção é dada ao pós-1888 no Sul Fluminense, com algumas exceções, como o livro Memórias do Cativeiro.  É justamente o que pretendo tratar aqui.

Após a abolição, há uma visível diminuição populacional na cidade. Os recenseamentos municipais e nacionais mostram que o número de habitantes caiu de 21.926 para 15.000 entre 1900 e 1911. A partir da década de 1920 a população barramansense volta a crescer, saltando para 22.312 habitantes. Segundo o censo geral de 1940, a cidade já contava com 26.346 habitantes nos anos 1930.

Esse aumento populacional a partir da década de 1920 coincide com o crescimento industrial e da pecuária leiteira em Barra Mansa que ocorre após a chegada de energia elétrica. Neste mesmo período, o município recebe indústrias têxteis, uma litográfica e indústrias de laticínios. Já na década de 1930, de acordo com os dados emitidos pelo Governo Federal à época, Barra Mansa produzia 60.000 litros diários de leite, sendo a maior produtora de leite do Estado do Rio e uma das maiores do Brasil. Além disso, nesse mesmo período a cidade recebe a segunda fábrica da Nestlé do país, a Moinho Fluminense e duas siderúrgicas de capital privado.

Trabalhadores rurais em frente à Fábrica da Nestlé, Barra Mansa, 1937. 
Fonte: Academia Barramansense de História – ABH

No entanto, é importante demarcar as distinções raciais nos mundos do trabalho em Barra Mansa neste período de crescimento econômico, populacional e de modificações políticas em âmbito nacional, entre a última década da Primeira República e o início do governo Vargas. Para isso, como aponta Álvaro Nascimento, é necessário estreitar os diálogos com as pesquisas a respeito do pós-emancipação que abordam escravidão, raça e racismo, de um lado, e cotidiano e luta dos trabalhadores, de outro.

Mesmo sem o censo geral de 1930 (que coletava informações sobre a década de 1920), a análise das entrevistas do LABHOI-UFF e de periódicos locais permite afirmar que a população negra, descendente de escravizados de Barra Mansa, permaneceu majoritariamente no trabalho rural e nas regiões mais afastadas do centro urbano em crescimento. Ademais, os códigos municipais se modificaram com o advento da industrialização e afetaram diretamente a população rural – consequentemente boa parte da população negra. Por exemplo, em 1923 ficou proibida a circulação de carro de bois, bem como a conservação e venda de porcos no perímetro urbano. Ainda que a vereança barramansense afirmasse que essas medidas visavam a manutenção da higiene local, tais posturas afetaram os pequenos vendedores de animais ou de leite, pois dependiam do carro de bois para o transporte da mercadoria ou da venda dos animais ainda vivos.

As manchetes do periódico Gazetinha, em 1927, mostram como a imprensa local caracterizava a vida rural. Em janeiro daquele ano foi publicada a manchete “Perseverança do homem civilizado”. Duas das qualidades apresentadas no texto deste homem civilizado eram a localidade e a qualidade da habitação. Já em abril do mesmo ano foi publicado um texto com o título “Malandragem”. nele os bairros mais afastados do grande centro são descritos como promíscuos onde os “vícios se infiltram como azeite”. Em nenhum momento é mencionada a cor ou qualquer outra característica dos moradores das periferias barramansenses, mas a partir dos trabalhos sobre pós-emancipação e as produções de Carlos Eduardo Coutinho, é possível inferir que grande parte daqueles “entregues aos vícios” era negra. 

Estes estereótipos raciais sobre negros e negras e dos lugares onde são maioria não ocorreram na cidade somente por conta do passado escravista do século XIX. É também fruto da própria concepção de município constituída em Barra Mansa no século XX, que nada difere dos ideais republicanos de então, que excluíam negros e negras dos projetos de cidadania. 

 Além das articulações entre mundos do trabalho rural, urbanização e racismo, as reivindicações do movimento operário barramansense também são fundamentais para compreensão das relações raciais em Barra Mansa entre 1920 e 1930. De acordo com Paul Gilroy, raça também é vivida por meio de outras identidades, e o combate ao racismo pode estar presente em movimentos aparentemente não relacionados com a questão racial, como lutas pela melhoria de condições de bairros populares e reivindicações sindicais praticadas por categorias com significativa presença negra. 

No caso de Barra Mansa, uma das classes mais ativas à época eram os trabalhadores de padaria e do comércio de forma geral. Entre 1922 e 1923 os padeiros e funcionários de padaria apresentaram duas petições na câmara municipal: uma para redução do horário de fechamento das padarias e outra reivindicando descanso semanal, como ocorria no restante do comércio e na indústria. Posteriormente, todas as categorias de proletários do comércio se uniram para requerer diminuição do tempo de trabalho em conformidade com horário estabelecido na cidade do Rio de Janeiro. Todos os requerimentos foram deferidos.      

Essas categorias também foram bastante ativas na cidade do Rio Janeiro. Mostra Marcelo Badaró que a atividade de padeiro era exercida majoritariamente por homens negros. Os padeiros negros participaram nas lutas pela liberdade no século XIX e esta experiência foi articulada aos protestos por melhores condições de trabalho no período republicano. A luta dos padeiros no século XX pode também estar relacionada com a luta pela liberdade ocorrida no período escravista em Barra Mansa.      

As políticas econômicas e sociais do Governo Vargas na década de 1930 impactaram os mundos do trabalho em Barra Mansa, embora aparentemente não tenham afetado a população negra. O recenseamento geral de 1940 mostra que cerca de 42% da população da cidade era negra (preta e parda). Este número coincide com as análises do pós-abolição que apontam a saída exponencial de descendentes de escravizados do sul do Rio de Janeiro até a década de 1940. Obviamente estes números do censo precisam ser melhor discutidos não só pelos métodos, mas também pela forma como a população se identificava e por quais motivos. Todavia, mesmo não sendo a maioria em Barra Mansa, ainda segundo o censo de 1940, negros e negras estavam majoritariamente trabalhando nas zonas rurais do município. 

Uma das diferenças entre a Primeira República e “Era Vargas” estava na noção de cidadania. No governo varguista havia um critério de valor contido no ideal de trabalho e aos seus frutos; ou seja, a condição de cidadão estava atrelada ao trabalho. Especificamente para os trabalhadores/as negros/as, ser identificado como cidadão representava às noções de liberdade constituídas a partir da cidadania, trabalho e família. Apesar do apoio da população negra a Getúlio Vargas, o governo tentou por diversas vezes, usando meios oficiais, minimizar as diferenças e desigualdades étnico-raciais mediante as ideologias de “Raça Brasileira” e “Democracia Racial”, além do desenvolvimentismo, que seria a solução para os problemas sociorraciais e econômicos do país.  Uma vez que o reconhecimento da cidadania estava ligado ao trabalho no período, os sindicatos, as associações de moradores, a luta por acesso à educação (entre outras demandas sociais), podem apresentar lançar luz sobre experiências dos mundos do trabalho no Brasil, sobretudo para a população negra.

Nesta linha, as pautas do Centro Operário de Barra Mansa, lidas apenas como uma instituição de classe, também podem e devem ser vinculadas ao debate racial. A instituição, fundada em 1933 por diversas categorias – trabalhadores do comércio, ferroviários, datilógrafos, operários fabris, entre outras –, tinha como um dos principais propósitos a luta por melhores condições de trabalho. Porém, outros três pontos chamam a atenção por fazerem parte das necessidades concretas da população negra na redução da desigualdade racial: (i) a criação de um curso de instrução primária para os associados; (ii) sindicalização dos trabalhadores rurais e (iii) assistência médica às famílias dos associados, incluindo dos falecidos em serviço. 

Família, alimentação e educação eram as maiores preocupações da classe trabalhadora nos anos 1930. Logo, a educação dos operários é um campo fundamental onde raça e mundos do trabalho se entrelaçam. Cerca de 50% da população local era analfabeta, e o número de alfabetizados é ainda menor quando são contabilizados apenas os maiores de 18 anos entre homens e mulheres. Pesquisas consolidadas como as de Jerry Dávila e Karl Monsma destacam que a maioria da população analfabeta da época era negra e este fator resulta na sua maior presença no trabalho braçal, bem como em sua vulnerabilidade social e na dificuldade em adquirir propriedades. Assim, a política de letramento do Centro Operário barramansense implicava na melhoria de vida de negros/as com a possibilidade de ingresso em outras áreas com remuneração maior.  

Ao mesmo tempo, a incorporação dos trabalhadores rurais na instituição sindical por iniciativa dos próprios trabalhadores também se caracteriza uma intersecção entre raça e classe. A maioria dos trabalhadores rurais eram negros e a legislação trabalhista de 1930 não versou quanto ao direito dos trabalhadores rurais. Desta forma, a inserção dos trabalhadores rurais ao centro operário garantia o acesso ao letramento, suporte nas reivindicações por melhores condições de trabalho e acesso a atendimento médico, o que nos leva para o terceiro, mas não menos importante aspecto. Pois, tal como a educação, à saúde era um problema nacional e mais uma vez a população negra possuía o maior índice de mortalidade e menor recurso para os cuidados vitais. 

Podemos, assim, pensar nos sentidos de raça e racialização nos debates sobre classe trabalhadora, noções de pertencimento e luta por cidadania da população negra nas décadas de 1920 e 1930 numa cidade marcada pelo escravismo oitocentista. Obviamente, há muitas lacunas para serem mobilizadas sobre raça e classe em Barra Mansa. Entretanto, é evidente que o processo de urbanização, industrialização e prosperidade da pecuária leiteira local, perpassa a experiência e exploração do trabalho de negros/as, bem como a racialização e o racismo. Sem uma análise desses elementos, nos afastamos da compreensão concreta do sentido de “movimento operário” no Sul Fluminense.

Fonte: Academia Barramansense de História (ABH)

Assista ao vídeo do historiador Thompson Clímaco no Cultne.TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: (EF03HI12) Comparar as relações de trabalho e lazer do presente com as de outros tempos e espaços, analisando mudanças e permanências. (EF09HI01) Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil. (EF09HI02) Caracterizar e compreender os ciclos da história republicana, identificando particularidades da história local e regional até 1954. (EF09HI07) Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes.

Ensino Médio: (EM13CHS401) Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos, classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços (urbanos e rurais) e contextos. (EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.

-+=
Sair da versão mobile