O americano Colson Whitehead foi o primeiro escritor a arrematar o prestigioso prêmio Pulitzer, na categoria Ficção, por dois livros em sequência. Em 2017, ganhou por “The Underground Railroad: Caminhos para a liberdade”, mistura de romance histórico e ficção científica que retrata a tentativa de fuga de dois escravizados pela “ferrovia subterrânea”, rede de apoio aos negros que escapavam das plantations do Sul dos Estados Unidos rumo ao Norte livre. No ano passado, repetiu a façanha com “O reformatório Nickel”, que se passa na Flórida segregada dos anos 1960 e acompanha um adolescente negro, admirador de Martin Luther King, preso injustamente e trancafiado numa instituição para menores infratores. Juntos, os três romances de Whitehead já lançados no Brasil (os dois premiados, além de “A intuicionista”) venderam 50 mil exemplares.
“Trapaça no Harlem”, novo livro escritor, é protagonizado por Ray Carney, um comerciante que às vezes ajuda a dar um fim legítimo a mercadorias roubadas. A fachada respeitável de Carney ameaça rachar quando é envolvido pelo primo no assalto ao luxuoso Hotel Theresa, onde a alta sociedade negra se hospedava nos anos 1960. Whitehead simpatizou tanto com Carney que já o escalou para seu próximo livro. Em entrevista ao GLOBO, o escritor lamentou que a violência racista descrita em seus romances históricos continue a se repetir e confessou seu incômodo com a pressão para desempenhar o papel de “negro que explica a cultura para os brancos”.
Por que você quis escrever sobre um cidadão respeitável com um pé no mundo do crime?
Cresci assistindo a filmes de assalto, como “O grande golpe”, de Stanley Kubrick, “O círculo vermelho”, de Jean-Pierre Melville, e “O segredo das joias”, de John Huston. Havia algo de quase admirável nos protagonistas que não tinham dinheiro e procuram recusar o próprio destino tentando botar em prática um plano mirabolante e fadado ao fracasso. Imaginei que seria divertido escrever um romance sobre um cidadão respeitável com um pé no mundo do crime. Depois de “The Underground Railroad” e “O reformatório Nickel”, queria um protagonista que não estivesse subjugado pela escravidão ou por leis segregacionistas.
Você já escreveu romances de teor histórico, autobiográfico, de formação, de mistério e apocalítico com zumbis. Como você escolhe o gênero literário com o qual quer trabalhar?
Geralmente tenho uma história na cabeça e me pergunto em qual gênero ela funciona melhor. Lancei uma autoficção sobre crescer nos anos 1980 (“Sag Harbor”, inédito no Brasil) porque sempre tinha evitado escrever histórias pessoais, mas achei que fazer isso me ajudaria a crescer como pessoa e como artista. No meu primeiro romance, “A intuicionista”, quis aprender a escrever uma história de detetive, com reviravoltas e pistas falsas.
Em “Trapaça no Harlem”, vemos as divisões dentro da comunidade negra. Carney não pode entrar no mesmo clube que seu sogro abastado por ser mais escuro. Por que você quis abordar a questão do colorismo?
Antigamente, não dizíamos colorismo, mas racismo internalizado. Ainda temos que lutar com esse tipo de preconceito, que era pior nos anos 1960. Além de mostrar como as pessoas falavam na época, tenho que retratar as dinâmicas de classe e como os negros internalizavam o racismo. Nos últimos anos, essa discussão tem aparecido mais na mídia. Nas minhas viagens ao Brasil (ele esteve no país em 1994 e voltou em 2018 como convidado da Flip), reparava que a pele das pessoas na TV era sempre mais clara do que a das pessoas que eu via pelas ruas.
O último capítulo do livro se passa pouco depois dos protestos contra o assassinato de James Powell, um adolescente negro, por um policial branco, em 1964. Você revisita a História americana em seus livros e ela segue se repetindo. A literatura tem algum papel diante da violência que se repete?
Falando como ser humano, não como escritor, me parece que, em geral, as pessoas são péssimas e a Humanidade não está melhorando. O que aconteceu com James Powell se repetiu ao longo das décadas. Duvido que as coisas vão mudar enquanto eu estiver vivo. A literatura pode conscientizar os indivíduos. Quem é racista e se beneficia da exploração não vai ler “O reformatório Nickel” ou “Trapaça no Harlem”.
Geralmente, escritores aclamados pela crítica, como você, são convocados a desempenhar o papel de intelectuais públicos e comentar sobre questões políticas, sociais e, no seu caso, raciais. Como você lida com essa expectativa?
Só porque as pessoas acham que você tem um papel não significa que você precisa desempenhá-lo. Minhas opiniões políticas estão nos meus livros. Por que eu gastaria meu tempo redigindo artigos de opinião quando eu poderia estar escrevendo um livro? Depois de “The Underground Railroad”, meus livros ficaram conhecidos no mundo todo e fui escalado para o papel de “negro que explica a cultura negra para os brancos”. É muito chato. Jornalistas brancos europeus que me perguntam por que Obama é considerado negro se a mão dele é branca deviam ser a porra de um livro e em vez de me fazer perder tempo
A pressão por diversidade no mercado editorial tem crescido. Você lança livros há mais de 20 anos. Como o mercado mudou desde então?
Mudou um pouco, especialmente nos últimos anos. Uma nova geração de editores brancos tem tentado corrigir os erros de seus antecessores e se interessado por livros de pessoas não brancas e tentado incluir negros na indústria. Mas é tudo muito lento. Em qualquer grande editora, a maioria das pessoas é branca, ainda que mais livros de autores negros estejam saindo. Não tenho esperança ou confiança de que as coisas vão mudar de fato. Quando se trata de raça, o progresso é lento e não tenho razões para acreditar no contrário.
Serviço:
“Trapaça no Harlem”
Autor: Colson Whitehead. Editora: Harper Collins. Tradução: Rogerio W. Galindo. Páginas: 416.Preço: R$ 54,90.