Em entrevista ao HuffPost, diretor de ’12 Anos de Escravidão’ conta que quis ‘criar um filme que possa ser visto como comercial ou como filme de arte’.
Por Matthew Jacobs Do Huffpost Brasil
“É como estar numa montanha-russa”, disse Steve McQueen sobre “As Viúvas”.
Atenção: Este texto CONTÉM SPOILERS.
Veja se esta não é uma oferta irrecusável: em seu novo filme, o diretor de 12 Anos de Escravidão, ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2014, se inspirou em um dos filmes mais famosos da história.
Não é tanto que As Viúvas, de Steve McQueen, faça referências a O Poderoso Chefão, se bem que ambos sejam sagas criminais que incluem mafiosos ameaçadores, tiroteios brutais e traições catastróficas. Na verdade, é mais uma questão do “alcance comunitário” que é comum aos dois filmes, como disse o diretor quando conversamos com ele na semana passada. McQueen quer que As Viúvas exerça a mesma atração universal que a obra-prima de Francis Ford Coppola.
Com elenco composto por alguns dos maiores nomes de Hollywood, As Viúvas descreve voltas e reviravoltas eletrizantes, denunciando o capitalismo, a política americana e a polícia racista sem recorrer a um único sermão para deixar sua mensagem muito clara – exceto por uma recomendação de Viola Davis que seria digna de figurar numa palestra TED: “Temos muita coisa para fazer. Chorar não faz parte da lista”.
Com roteiro co-escrito por Gillian Flynn, autora dos romances Garota Exemplar” e Sharp Objects: Objetos Cortantes, As Viúvas acompanha quatro mulheres que se aliam para realizar o assalto que matou seus maridos e as deixou afundadas em dívidas. Ao centro do grupo está Veronica (Viola Davis), uma mulher forte de Chicago casada com o líder do grupo de assaltantes malfadados (Liam Neeson). Ela, Michelle Rodrigues, Elizabeth Debicki e Cynthia Erivo enfrentam parlamentares corruptos (Colin Farrell, Robert Duvall), chefões do crime organizado (Daniel Kaluuya, Brian Tyree Henry) e outras figuras diversas (Carrie Coon, Jacki Weaver, Jon Bernthal e uma cachorrinha branca peluda).
O projeto destaca a evolução do estilo e das sensibilidades de McQueen ao longo de cada um de seus quatro filmes. 12 Anos de Escravidão elevou o perfil do cineasta britânico de 49 anos, mas ele atraiu o público do cinema de arte inicialmente com Hunger, de 2008 (sobre a greve de fome de prisioneiros irlandeses em 1981) e Shame, de 2011 (um retrato intransigente de um viciado em sexo, estrelado por Michael Fassbender, com muita nudez). As Viúvas é algo muito distante desses três filmes; seu tom não é tanto reflexivo quanto de urgência.
Animado e eloquente, McQueen me telefonou na semana passada para falarmos de As Viúvas, que estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto em setembro, onde foi aclamado, e chegou aos cinemas americanos no dia 16 de novembro. Conversamos sobre a cena de intimidade intensa de Viola Davis e Liam Neeson, paralelos trumpianos e por que McQueen queria que este filme fosse sua versão própria de O Poderoso Chefão. As Viúvasestreia nos cinemas brasileiros nesta quinta (29).
Entre seus filmes, As Viúvas é o que tem o apelo comercial mais evidente. É uma experiência diferente para você?
É, sim. Quando você termina um filme, o maior ingrediente que está faltando é o público, é claro. A reação que estamos tendo, basicamente desde Toronto, vem sendo incrível. Acho que as plateias estão reagindo em grupo. É como estar numa montanha-russa – as pessoas que assistem ao filme ficam com a respiração suspensa, aplaudem, gritam e dão risada. É como uma trilha sonora acrescentada ao filme, algo que obviamente não estava ali quando o fizemos. Não consigo pensar na palavra certa. Qual é a palavra que estou procurando? Nem consigo pensar na palavra! Ok, como vou explicar? Estou tentando achar a frase certa. É quase como se as plateias andam respondendo em uníssono. Pronto, é essa a palavra. Graças a Deus, acabei encontrando a palavra.
Vamos começar do começo, com a tomada inicial. É uma imagem impactante e que prende a atenção das pessoas imediatamente porque é tão íntima: Viola e Liam na cama quase se devorando. Como vocês três chegaram à visão de como seria aquela paixão, desde o primeiro momento?
Para começar, acho que os dois gostaram de estar juntos, como atores que apreciam um ao outro. Foi uma daquelas coisas, eu só precisei dizer “vão lá, usem suas línguas!” Eu tinha que deixar claro desde o começo do filme que aquelas duas pessoas de meia-idade estão muito apaixonadas. É preciso deixar claro desde o primeiro momento como é o relacionamento, o sentido do relacionamento, o amor e a paixão que eles sentem um pelo outro – e isso foi mostrado através dos beijos. Outra coisa, eu curti assistir àquela cena. Ela é boa. E pronto.
É impactante também porque você justapõe o romance deles com um tiroteio violento e estridente. O que significa essa dicotomia, para você?
Para mim é como uma carícia e um tapa, uma carícia e um tapa. Justamente quando você está ficando à vontade, você é despertado. Foi isso que eu quis criar, como se estivesse jogando a plateia de um lado do cinema para o outro lado. Quando você entra naquele espaço, mesmo que esteja lá com sua pipoca e seu refrigerante, você pensa “ok, cheguei”. Usamos essa dicotomia para fazer o espectador mergulhar no filme já nas cenas iniciais, basicamente.
É a calma contraposta ao caos, algo interessante quando comparado a seus filmes anteriores. Por motivos históricos óbvios, 12 Anos de Escravidão foi considerado um filme importante. Essa descrição geralmente serve para indicar filmes de arte e trabalhos que podem ser reconhecidos com o Oscar. Acho que, especialmente agora, em 2018, As Viúvas também possui uma certa importância – e ao mesmo tempo também é um filme cheio de reviravoltas e que vai agradar ao grande público. Você teve consciência de estar fundindo essas duas sensibilidades?
Sim, de certo modo. Quando pensamos em O Poderoso Chefão ou em Chinatown, esses filmes são apreciados por todo o mundo, desde um contador até um sujeito que trabalha numa floricultura ou numa livraria, alguém que é um advogado de primeira linha em algum lugar ou um operário da construção. Todas essas pessoas se interessam por esses filmes. Esses filmes têm um certo tipo de alcance comunitário. Não interessa qual é sua origem, todo o mundo vai assistir a esses filmes. E foi isso que eu quis criar. Um filme que pudesse ser visto como trabalho de arte ou como cinema comercial. A verdade é que o mais importante é se o filme é bom ou ruim. Fim de papo. Não me importa se é Wong Kar-wai ou, sei lá, quem é o diretor mais comercial aí fora, Spielberg? Não me importa.
Outra coisa, minha intenção foi fazer um filme que fosse um passeio de montanha-russa. O que quero dizer é que em todo filme sobre um assalto, assim que a coisa começa a rolar o espectador sabe que haverá uma trajetória. Eu quis levar a plateia nessa trajetória de montanha-russa, passando por esse ambiente político e social. Todos os mergulhos e os giros, tudo isso – quando você está nisso como espectador, já sabe que em algum momento haverá algum tipo de punição, um castigo merecido.
O filme de assalto é um gênero muito conhecido, mas As Viúvas distorce seus elementos básicos. Aqui o assalto é uma necessidade, e não um ato de exibicionismo. Você estudou outros filmes desse gênero para analisar o que poderia emular, ou, mais especificamente, o que não deveria emular?
Nem um pouco. Foi uma história. É como acontece com tudo. Os gêneros são feitos para serem alterados ou para rompermos com eles. Antes de haver um assalto, foi outra coisa. Era sobre como infringir regras. Então eu não estava pensando “este vai ser um filme de assalto ou não vai?”. Eu estava pensando “o que é ou não é um bom filme?”. Os maridos dessas mulheres morreram numa tentativa de assalto, e as mulheres tiveram que tomar as rédeas nas mãos. Peguei o núcleo da história e a situei em Chicago. Portanto, estudar filmes sobre assaltos não me ajudaria em nada porque o importante é a tensão, é o suspense, é o timing, é o ritmo, são os desempenhos dos atores nesses espaços.
Quando 12 Anos de Escravidão saiu, você falou em identificar algo de positivo no personagem de Michael Fassbender, um brutal dono de escravos, e não enxergá-lo apenas como monstro. Em um ano como o atual, você sente algo semelhante em relação ao personagem de Colin Farrell em As Viúvas, um político corrupto que utiliza os marginalizados de Chicago para seu próprio benefício? E quanto ao pai de Colin, representado por Robert Duvall?
Eu falei em encontrar “algo de positivo”? Acho que não usei essa expressão.
Não, estou extrapolando um pouco. Você disse que o enxergava como um “ser humano” e não como um “demônio”.
Sim, eu não fujo de encarar isso. Ele faz coisas ruins, mas não entende por quê. É algo semelhante com Colin. Ele possui empatia, até certo ponto, apesar de ser uma pessoa com quem você discorda completamente. Não é possível transmitir a verdade com personagens unidimensionais. De certo modo, sinto um pouco de pena de alguém como Mulligan, o personagem de Colin Farrell. Ele tem um pouco de ideia do que está acontecendo, mas de alguma maneira foi forçado a seguir esse caminho – talvez por seu pai, talvez por seu assistente, mas também por ele mesmo. Apesar de saber que não é a coisa certa a fazer, ele encontrou o caminho correto para o êxito.
O personagem de Robert Duvall evoca o arquétipo do político branco, homem, da velha guarda, que vive falando mal de imigrantes ilegais. Ou, enxergando sob outra ótica, ele evoca Donald Trump, por exemplo. Algumas pessoas certamente vão fazer essa interpretação, devido ao que vem acontecendo na América no momento. Isso foi intencional?
Acho que esse arquétipo sempre esteve presente. Dez anos atrás, 20 anos atrás – sempre esteve presente. Não é nada de novo, então não tive que fazer muita força nem pensar em Trump para criá-lo. Mas o personagem de Robert Duvall é também um sobrevivente. Pense em Chicago. Quem foi mesmo aquele prefeito de Chicago que foi notório? Richard Daley, por exemplo. E há outros desse tipo pelo país afora e outros na Europa. Esse tipo de nepotismo dominando o poder não constitui novidade nenhuma.
E é preciso entender o personagem. Ele não pode ser unidimensional. Esse é um homem cuja mulher morreu ainda jovem e que criou seu filho. Há expectativas de todo tipo em relação ao futuro dele.
Pensar o personagem como um sobrevivencialista é um ângulo interessante. O que eu gosto em As Viúvas é que é um filme cheio de paradoxos. Uma das justaposições mais engraçadas é a cachorrinha peludinha branca de Viola Davis. Ela está sendo levada a cometer este crime enorme, que está ligado a toda uma corrupção urbana, e a cachorrinha acaba mostrando que ela é uma mulher comum, na realidade. Ela se recusa a fazer qualquer coisa sem garantir que a cachorrinha seja bem cuidada.
Ela é tudo que Veronica tem. Ela perdeu o marido – e perdeu outra coisa, mas não podemos falar disso. A cachorrinha é a única coisa que ela tem. Fico feliz por as pessoas darem risada, mas a importância da cadelinha é que ela a abranda. Muita gente poderia encarar Veronica como uma pessoa tipo MEGERA devido ao peso de seu passado recente, algo sobre o qual não fazemos ideia, mas que vamos descobrir mais tarde. A cadelinha a suaviza de uma maneira muito subliminar: sim, ela tem alguma coisa que lhe é cara. Ela é um elemento muito importante na trama. No início do filme eu disse: “Temos que fazê-la levar a cachorra para um canil, porque ela não sabe se vai voltar”. Acho bacana que as pessoas vão entender que há uma razão e uma finalidade nisso – que a cachorrinha não é um acessório caro, é um elemento realmente importante da vida dela e da narrativa do filme. Adoro esse tipo de disfarce.
Os cineastas frequentemente dizem que não se deve trabalhar com crianças ou com animais. Como foi a cadelinha no set?
Ela foi tranquilíssima. Acho que Viola ficou com vontade de ficar com ela. Ela é uma cachorrinha maravilhosa, linda. Adoro o fato de que quando você olha para ela a primeira vez, não vê nada de especial, e então de repente ela ganha uma dimensão maior do que sua primeira impressão indicava. Há muitos icebergs neste filme. É isso que está deixando as pessoas empolgadas.
Uma coisa interessante neste filme é que muita gente já me falou que quer vê-lo de novo. Como andar numa montanha-russa, a primeira vez que você vai você não sabe o que vai acontecer. Depois você já sabe o que vai acontecer, mas, mesmo assim, se empolga novamente. Foi por isso que fiz este filme para 200 pessoas, para 500 ou para mil. Não fiz para uma pessoa assistir num laptop enquanto se levanta para ir à geladeira a cada cinco minutos. Foi muito importante para mim que suscitasse aquela reação da plateia. É um filme de participação em grupo.
Imagino que você não tenha ouvido muito disso com seus filmes anteriores. Eles são muito mais difíceis de se assistir, emocionalmente falando.
A questão é que as pessoas te rotulam assim que você passa pela porta. Eu só fiz três filmes antes deste! Este é meu quarto filme! As pessoas gostam de ter uma ideia de quem você é, antes mesmo de você conseguir se firmar. As pessoas dizem “oh, mas não parece um filme de Steve McQueen”. Mas estou apenas começando, cara. Preciso realmente chegar de algum lugar primeiro, antes de você começar a pensar em que tipo de pessoa ou cineasta eu sou.
Você não está preparado para que o “filme de Steve McQueen”, entre aspas, seja uma ideia cristalizada que é perpetuada, como se você fosse alguém como Spielberg, que faz um filme quase todo ano há quatro décadas.
Com certeza. A ideia toda de ser rotulado é desconcertante. Como artista, você vive procurando e tentando identificar algum tipo de razão para abrir mão de muita coisa. Você deixa sua família e seus amigos e vai passar um ano ou mais em outra cidade.
Mesmo que você não esteja preparado para as pessoas tirarem conclusões sobre o conjunto de sua obra, uma coisa que está presente em cada um de seus filmes é uma cena marcante captada em uma só tomada longa: Michael Fassbender falando sobre a greve de fome em Hunger e correndo em Shame, Chiwetel Ejiofor com o laço em volta do pescoço em 12 Anos de Escravidão, e agora a cena com Colin Farrell em As Viúvas que passa da Chicago dos imóveis alugados baratos para as mansões de ricos a poucas quadras de distância. Existe algum elemento em comum entre essas cenas, além da técnica usada?
Nem um pouco. O que acontece é que nunca defino uma situação. Eu não encaro uma situação e digo “vou filmar esta coisa nesta tomada e aquela outra coisa naquela tomada”. Basicamente, é o que a narrativa está dizendo e como ela precisa ser filmada. A ideia toda de um travelling é como ter uma tomada dupla ou uma tomada over the shoulder; para mim, é apenas isso. Não significa nada além de “qual é a melhor maneira de retratar essa parte específica da narrativa?” Não sou eu mostrando meus músculos, dizendo “vejam o que eu sou capaz de fazer”. Como a tomada pode servir melhor à história? O importante é isso.
Se eu faço um filme onde isso não acontece, tudo bem. Talvez eu faça um filme em que não haja uma tomada over the shoulder. Mas, como isso é visto como muito mais convencional, as pessoas não comentam. Aquela tomada, com Colin no carro, tem tudo a ver com a narrativa e com a cidade. O movimento de pobres para ricos, a conversa que está ocorrendo – ficamos sabendo de cinco coisas diferentes durante aquela trajetória.
Além disso, sou um diretor de cinema britânico que gosta de aproveitar cada libra ao máximo.