Com autores negros, biblioteca na quebrada aposta na subversão contra o racismo

Um levantamento do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) mostrou que o número de pessoas morando em favelas subiu entre 2000 e 2010. 11% da população de São Paulo vive nestes espaços periféricos.

Por Kauê Vieira, Do Hypeness

Ilustração de uma mulher negra segurando um livro na mão direita
(Foto: Reprodução/Instagram)

A alta concentração de densidade populacional exige a disponibilização de uma série de serviços que atendam ao fluxo de pessoas. Transporte público de qualidade, saúde para todos, boas escolas e claro, cultura. Elementos fundamentais para manter a qualidade de vida.

Só assim para reverter um cenário que diminui em 21 anos a expectativa de vida de moradores das periferias. Segundo o Mapa da Desigualdade de 2017, habitantes de bairros como o Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, chegam até os 55 anos de idade.

Você deve estar pensando que isso se dá por causa da violência. Pode até ser, desde que você também tenha parado para pensar sobre os efeitos da falta dos tais acessos no encurtamento da vida de homens e mulheres, principalmente negras.

A solução não vem do Estado, principal ameaça à vida de pessoas pretas. A cultura encontra espaço na imensidade de concreto das quebradas de São Paulo por causa de seus próprios habitantes. A mesma zona sul de São Paulo abriga um dos eventos de cultura mais representativos da cidade, o ‘Cooperifa’. O sarau fundado pelo escritor e poeta Sérgio Vaz e o jornalista Marco Pezão é um ode à literatura e mostra como os livros salvam vidas.

O Hypeness conversou com os membros da Organização Ujima – que talvez inspirados pelo exempo do ‘Cooperifa’, acaba de inaugurar uma biblioteca na periferia da zona leste da capital paulista apenas com livros escritos por autores e autoras negras e títulos relacionado com a história e cultura afro-brasileira.

“Nossa ideia de construir uma biblioteca é anterior à própria Organização Ujima. Na verdade, a formação intelectual e política sempre foi um princípio imprescindível das grandes organizações pretas de nossa história. Para levarmos a Ujima a sério, portanto, não poderíamos pensar diferente. A proposta de construir a biblioteca tem estado presente no nosso cotidiano desde que formamos a Organização Ujima. O processo é difícil e lento, especialmente por ser uma dedicação de construção por conta própria só nossa, pessoas com rotinas comuns de trabalho e estudo. Mas consideramos ser este um preço barato a se pagar pela manutenção de nossa autonomia e independência”, destacam os membros do Ujima, que responderam coletivamente aos questionamentos do Hypeness.

 

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A Biblioteca Assata Shakur fica na Vila Formosa, zona leste da cidade. Inaugurado há poucos dias, o espaço abre apenas aos finais de semana, mas já está funcionando a todo o vapor.

É difícil traduzir logo de cara os impactos para a comunidade de uma biblioteca voltada para o desenvolvimento da população preta. No entanto, dá pra cravar que a infância ou vida de uma pessoa negra com um livro em mãos será diferente. Principalmente com títulos e escritos que se preocupam em contar a verdadeira história do Brasil para que seja possível pensar uma realidade que viabilize a existência dos afro-brasileiros.

“Desde o primeiro evento que realizamos nela, os livros já têm circulado. Por exemplo, algumas famílias já trouxeram suas crianças, que escolheram seus livros para ler”, comemoram os membros do Ujima.

Fórmula mágica da paz

Sabe o papo de que o Brasil tem tudo para ser um país desenvolvido e com menos problemas? Ele só existirá na prática quando a lógica a violência não for sinônimo para manter a segurança.

Todos perdem. Quer dizer, os pretos é quem pagam com suas vidas. Com a liberdade. Não sou eu quem está dizendo. O Brasil é dono da quarta maior população carcerária do mundo. São 622 mil pessoas atrás da grades.

Desse total, 61,6% são pretos e pardos, diz o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).

A quantidade de pessoas pretas com acesso a qualquer tipo de literatura já é desumanamente mínima. Com acesso à literatura preta, então, é insignificante, infelizmente. Mesmo os espaços culturais e literários públicos, que se encontram majoritariamente no centro da cidade, não proporcionam esse tipo de literatura, para o bem ou para o mal.

A disparidade, quer dizer, o racismo é tão cruel, que na contramão das cadeias lotadas, os negros são mal representados na cultura como um todo. A Universidade Federal de Brasília (UnB) aponta que apenas 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros.

No cinema não é diferente, APENAS 2% dos diretores de produções nacionais são negros. Daí a importância da Biblioteca Comunitária Assata Shakur.

“Achamos ser essencial que haja espaços autônomos e comunitários assim nos bairros e regiões mais pretas. O ideal é que toda e cada região da cidade possa oferecer e proporcionar acolhimento e segurança ao nosso povo em espaços autônomos assim. A Biblioteca leva ‘Comunitária’ no nome também porque sua proposta é de construção (ou, melhor, reconstrução) do sentimento de comunidade preta”.

Ou seja, não há paz sem a quebra do racismo que estrutura a desigualdade brasileira. E também não existem paz sem a subversão, aqui representada pelo nome de Assata Shakur.

A escolha do nome não é obra do acaso. A luta antirracista da norte-americana fez com que Assata se tornasse uma terrorista aos olhos do FBI, que a persegue até os dias de hoje. Detalhe, 40 anos depois das acusações, ela se tornou a primeira mulher na lista dos 10 terroristas mais procurados pela polícia federal dos Estados Unidos.

Assata Shakur, mulher preta que sempre se recusou a se desafricanizar e é símbolo da luta preta radical, permanece exilada em Cuba até hoje por ainda constar na lista dos mais procurados do FBI, justamente por ter dedicado e sacrificado sua vida em nome do nosso povo. Então, dedicar nossa biblioteca ao seu nome é o mínimo que podemos fazer para demonstrar nossas admiração e gratidão.

Ex-membra do Partido dos Panteras Negras, Assata fez o que pode para garantir a liberdade dos negros norte-americanos, ao mesmo tempo que questionou o machismo dos membros do grupo. Ela ainda foi membra do Black Liberation Army (BLA), o exército da liberação negra.

“A escassez de estudo sobre a história e as teorias políticas essencialmente pretas na formação política dos Panteras Negras, organização da qual Assata fez parte, era um problema que ela mesma criticava: ‘Eles estavam lendo o Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung, mas não sabiam quem eram Harriet Tubman, Marcus Garvey e Nat Turner. Muitos deles mal conheciam qualquer tipo de história negra ou africana’. Sendo a Biblioteca Comunitária Assata Shakur um projeto de uma organização pan-africanista, não poderíamos deixar de sermos muito criteriosos e rigorosos com isso. Essa crítica dela ainda vale para o movimento negro em geral que queira se instruir literariamente de maneira subversiva”, reforçam os jovens negros.

Ainda sobre Assata Shakur e subversão na luta antirracista, a Organização Ujima também tem suas inspirações para chegar ao ponto de poder realizar a curadoria e administrar uma biblioteca comunitária. Eles destacam a autobiografia de Malcolm X, escrita por Manning Marable, como fundamental. Tem até curso anual inspirado em um dos principais ativistas negros do mundo.

Uma estante cheia de livros
A luta antirracista de Assata Shakur é inspiração para os criadores (Foto: Imagem retirada do site Hypeness)

“Um livro que é unanimidade entre os membros da Organização Ujima Povo Preto é a autobiografia do Malcolm X. Há muitos outros livros e textos que foram extremamente marcantes para todos nós, mas foi a história de Malcolm que primeiro transformou profundamente nossas mentes e almas de maneira irreversível. Todo ano, no 19 de maio, aniversário de Malcolm, realizamos um curso intensivo sobre ele, seus pensamentos, suas influências, contando desde seu nascimento até seu assassinato e seu legado. A figura de Malcolm é muito extraordinária também porque foram muitas mulheres que o formaram e o transformaram no Malcolm que conhecemos, e são elas próprias, como sua mãe, sua esposa e suas seis filhas, fortes referências de identidade feminina preta”.

O ímpeto de Malcolm e Assata Shakur faz com que eles não contem com a ajuda do Estado. Não que o poder público se fizesse presente, mas a Biblioteca Comunitária Assata Shakur considera os governos, em todas as esferas, “a principal causa de nosso genocídio e da situação desgraçada que nosso povo preto se encontra”.

A gente nunca teve nem quis ter auxílio ou qualquer relação com o Estado. Assim, já por princípio moral não podemos nos associar ou ter qualquer tipo ou grau de relação que seja com o Estado que nos considera e nos trata como seu inimigo. Dito isso, consideramos também ser a relação que mantêm com o Estado algumas organizações pretas a razão de sua própria falência. Temos visto, na história e recentemente, que organizações que passam a contar com ou depender de auxílio ou relação com certos governos, além de virarem mero instrumento eleitoral justamente por sua existência depender de política pública x ou y, eventualmente caem em falência ou ostracismo, seja material ou moral.

Sistema negro

Carolinas, Conceições, Kabês, Lívias, Cidinhas, o universo literário negro tem mais um espaço para chamar de seu. Acessível, no coração de um dos pontos mais negros da maior cidade do Brasil, a Biblioteca Comunitária Assata Shakur não pode passar despercebida.

Complicado selecionar os principais livros, mas fique tranquilo, pois Angela Davis e Maya Angelou dividem espaço com nomes do cenário atual como Caio César, e uma seção infantil com títulos para pretinhos e pretinhas.

“É difícil apontar títulos que seriam mais interessantes porque a biblioteca tem um acervo muito variado sobre diversos temas e abordagens de nossas histórias, trajetórias, culturas, ciências, artes, literaturas, etc. Temos uma seção de livros infantis para o fortalecimento da autoestima de nossas crianças, assim como uma grande variedade de obras escritas por mulheres pretas, muitas vezes esquecidas, de Carolina de Jesus a Angela Davis, de Conceição Evaristo a Maya Angelou”.

Estante cheia de livros infantis
Tem ainda uma seção com livros infantis escritos por pessoas negras (Foto: Imagem retirada do site Hypeness)

Assata Shakur e as lutas negras de heróis brasileiros têm lugar especial nas prateleiras da biblioteca.

“Há alguns títulos específicos que fazemos questão de destacar, sim, e, sem dúvida, alguns deles são os da própria Assata, com destaque para o ‘Assata Shakur – Escritos’, que foi traduzido e publicado pela Organização Reaja, que possui ela própria um projeto e espaço de formação em Salvador, a Escola Winnie Mandela. As obras de Marcus Garvey também, especialmente a traduzida e publicada por nossos irmãos do Ciclo de Formação Marcus Garvey, a ‘Procure Por Mim na Tempestade’. A autobiografia do Malcolm X é outro que definitivamente deve ser lido por toda pessoa preta”.

Aliás, diferente de promessas megalomaníacas que acabam ceifando vidas de pessoas negras em detrimento da manutenção do poder da branquitude, o trabalho destes jovens ativistas ouvidos pelo Hypeness ecoa. Sua ajuda é bem-vinda.

Procure o Ujima pelo e-mail: [email protected]

Facebook:

www.facebook.com/UjimaPovoPreto

Ou no Instagram da Biblioteca Assata Shakur:

www.instagram.com/bibliotecaassatashakur/

“Só sonhamos o que sonhamos para o povo preto porque os que vieram antes de nós sacrificaram suas vidas para que pudéssemos hoje sonhar. Somos nós próprios frutos de seus sonhos. Assim, consideramos só ser coerente e justo que deixemos Assata Shakur falar por nós:

‘Divagando sobre a ideia de uma Nação Preta na Babilônia, uma nação de Pretos e Pretas bem no meio da barriga da besta; imaginando uma juventude Preta florescendo e sendo criada em escolas Pretas, ensinadas por professores que as amassem e as ensinassem a se amar. Controlando suas vidas, suas instituições, trabalhando juntos para construir uma sociedade humana, pondo fim ao longo legado de sofrimento que o Povo Preto tem suportado na Amérika. Minha mente viajou nessa ideia e em um minuto eu estava imaginando ônibus pintados em vermelho, preto e verde, prédios com decorações Africanas, programas de televisão e filmes Pretos que refletissem as características reais da vida Preta, ao invés daquelas criadas pelo racismo. Eu imaginei tudo, desde cidades chamadas Malcolmville e Nova Lumumba à recepção de líderes revolucionários de todo o mundo na Casa Preta’”.

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