Como combater os efeitos do racismo na saúde de crianças negras?

Projeto busca melhorias e apoio a serviços comunitários e profissionais de saúde, começando em comunidades quilombolas no Vale do Ribeira, em São Paulo

“O racismo determina desigualdades ao nascer, viver e morrer para quase metade da população brasileira. O racismo desumaniza e desqualifica o trabalho em saúde e tem como resultado uma expectativa de vida menor para a população negra: as taxas de morte materna e infantil são maiores; a violência produz mais mortes e mortes mais precoces neste grupo.”

A fala do professor Marcos Kisil, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, é baseada em dados de órgãos como o Unicef, OMS, IBGE, além de seu trabalho como pesquisador em gestão de saúde e sua experiência de mais de 30 anos atuando como empreendedor social no Brasil, América Latina e Caribe.

Marcos Kisil, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP – Foto: Divulgação/Idis

E para levar o conhecimento produzido na Universidade e pela ciência, Kisil foi convidado pela Fundação José Luiz Egydio Setubal (FJLES), instituição filantrópica e sem fins lucrativos, para ajudar na formulação e implantação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento à Saúde da Criança e do Adolescente Negro.

Para entender o propósito do projeto, primeiro é preciso falar de ciência, mais especificamente, da relação entre a primeira infância e o estresse tóxico. A neurociência tem trazido evidências de que as experiências passadas pela criança na primeira infância, 0 a 6 anos, vão moldar os circuitos cerebrais, que são a base do desenvolvimento humano. “Todos nascemos com potencial, a questão é saber se vamos contribuir para o desenvolvimento ou teremos ações humanas para impedi-lo”, explica o professor da FSP.

Ele conta que o cérebro humano atinge 80% do tamanho dele até o terceiro ano de vida. E é nessa etapa que formamos cerca de 40% das habilidades que levaremos para a fase adulta. Biologicamente, essa construção se dá através do encontro de duas células neuronais, a chamada sinapse.

Na primeira infância, a capacidade do nosso cérebro em criar sinapses é de 700 novas conexões neurais por segundo. “A neurociência nos mostra que, se não estimulamos o cérebro naquele momento, ele não avança. É a janela de oportunidades para nos desenvolvermos”, destaca Kisil.

E o que provoca esses estímulos é o ambiente em que a criança está: casa, escola, amigos e, principalmente, na relação com seus cuidadores. Viver na pobreza extrema, abuso físico e emocional recorrentes, negligência crônica, depressão materna grave, violência familiar, entre outras situações, geram o chamado estresse tóxico.

De acordo com Kisil, o estresse tóxico rompe a arquitetura cerebral, afeta órgãos de outros sistemas e leva a níveis mais baixos de responsividade dos sistemas de controle do estresse, além de elevar o risco de doenças relacionadas ao estresse, com impacto negativo no aprendizado mesmo quando adulto.

“O estresse tóxico não é intrínseco da criança, são situações contextuais, uma causa externa ao indivíduo. Tirar o estresse tóxico da criança pode alterar as condições de vida futura.”

Como médico e gestor de saúde, o professor começou a delinear um projeto a partir do ponto de vista da promoção e prevenção à saúde.

Racismo e saúde

Para a Fundação José Luiz Setúbal (FJLES), que há mais de dez anos atua na promoção da saúde infantil por meio da assistência, geração e disseminação de conhecimento, nada mais natural que o apoio a um projeto voltado a crianças e adolescentes negros. Eles são os que têm menos direitos assegurados e estão mais suscetíveis a vulnerabilidades, sofrendo o chamado racismo estrutural.

“A fundação sempre teve preocupação com crianças com necessidades específicas, e resolvemos trabalhar a inclusão do ponto de vista da saúde da criança”, disse José Luiz Setúbal, que é pediatra e presidente da FJLES.

José Luiz Setúbal, pediatra e presidente da FJLES – Foto: Divulgação/FJLES

O primeiro passo do Programa de Apoio ao Desenvolvimento à Saúde da Criança e do Adolescente Negros foi pesquisar documentos como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, de 2007, e reeditada em 2017, do Sistema Único de Saúde (SUS).

Alguns dos pontos dessa política são a redução da mortalidade infantil da população negra; a diminuição da mortalidade precoce na população negra, em especial entre jovens e adultos, e da mortalidade materna entre as mulheres negras; promoção do controle de situações de abusos, exploração e violência sexual; incentivo ao acesso à saúde para a população negra rural, em particular os remanescentes de quilombos.

A política de saúde destaca a prevenção justamente de muitas situações diretamente ligadas ao estresse tóxico. “Ela existe, mas ninguém a conhece e por isso resolvemos começar o projeto com a formação de equipes de saúde que trabalham em regiões com comunidades quilombolas”, afirma Kisil.

O programa é baseado em educação a distância e com capacitação de agentes e profissionais da saúde de equipes de Unidade de Saúde da Família (USF) e de Unidade Básica de Saúde (UBS) do Sistema Único de Saúde (SUS). “São eles que atuam junto às crianças e às famílias, pensamos em capacitar indivíduos que têm esse contato”, disse o professor.

“Queremos fazer um projeto que atenda às necessidades dessas populações locais. Primeiro faremos um diagnóstico e, depois, vamos verificar a relação entre essas necessidades e o nosso diagnóstico”, segundo José Luiz Setúbal.

O projeto já teve uma primeira fase de aprofundamento sobre o tema em conversas e diálogos com organizações da sociedade civil, acadêmicos de universidades públicas e membros de entidades públicas estaduais e municipais. Além de esforços em conhecer e aprender sobre progressos conseguidos desde a promulgação da Constituição de 1988, foi realizada discussão do tema no Congresso Internacional do Hospital Sabará, em palestras com entidades como a OAB, sobre direitos humanos e racismo, bem como se realizaram webinars sobre o tema.

Agora a iniciativa está entrando na fase de projetos comunitários para a população quilombola no Vale do Ribeira, no interior de São Paulo. “Queremos fazer um modelo que possa ser replicado em todo o País”, assinala Kisil.

Mais informações: e-mail [email protected]

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