Como eu me descobri uma feminista

Anos atrás em um bate-papo com uma amiga de longa data, fui confrontada por ela, com um certo desprezo, sobre o “quando foi que eu teria me tornado uma feminista”, estando o termo feminista acompanhado de uma quase mordida-careta no lábio bastante pejorativa. Quase um “nojinho”. Prontamente respondi: “não sou feminista, apenas acho que isso (objeto da nossa conversa na época!) não é justo!”

Por , do Brasil Post 

Hoje, ao refletir sobre o como o feminismo ainda é visto com desdém-irritação-preguiça por uma importante parcela da nossa sociedade, passou um filme na minha cabeça sobre como eu “saí do armário” para primeiro me tornar e, bem depois, me assumir como feminista.

De todos os preconceitos enraizados na sociedade e no inconsciente coletivo, o machismo certamente é o mais presente e o mais letal e sem dúvida o mais difícil de extirpar, até por contar com opressores e oprimidas advogando em seu favor ainda que inconscientemente.

Sim, eu já fui muito machista! Muito mesmo! Já achei que mulher “tem que se dar ao respeito”, mesmo que me incomodasse como o fato de homens não precisarem fazer o mesmo. Já acreditei que para crescer na carreira a mulher tinha que se masculinizar e ser assertiva, objetiva bem como deixar de lado suas emoções, embora percebesse o quanto minhas colegas e chefes mulheres eram boas mesmo sendo muitas vezes o oposto desse discurso. Já fui adepta do termo “mulheragem” que basicamente seria alguém (homem ou mulher) cheio de “não me toques” e “mimimis”, características que sempre desprezei em qualquer pessoa. Já tachei aquela diretora pentelha de “mal comida” enquanto secretamente a admirava. Poderia ainda citar minhas participações nada feministas nos Jogos Jurídicos. Já achei exagero considerar as músicas do Michel Telò apologia ao estupro ainda que ODIASSE quando alguém me puxava pelo braço na balada. Também já pensei com indignação sobre como e porque algumas mulheres se mantinham em relações abusivas mesmo tendo vivenciado situações de abuso dentro de casa nas quais eu intuía que a liberdade não depende apenas de força de vontade.

Acredito que grande parte do meu machismo vinha da vontade de querer ser menos emocional e principalmente do medo! Do meu desejo imenso de fugir do estereótipo feminino que por muito tempo significou estar desprotegida e ser dependente. Ser homem – ou como um – era sinônimo de ser livre para fazer o que eu quisesse! Tanto me esforcei que consegui me tornar a mulher que de fato sempre ouviu que “era diferente das demais mulheres”. Por ser uma pessoa ativa, independente, “brother”, que fala palavrão para caraleo, gosta de futebol e de cerveja, não é ciumenta e que não gosta das coisas clássicas de menina, eu me considerava do clube do bolinha!

Uma outra parte desse lado machista veio do pavor da vitimização! De todas as angústias que sofri, o terror de ser tachada de vítima e de que as pessoas tivessem pena de mim, moldou importantes aspectos da minha personalidade adulta. Eu não seria vítima de nada, dependente de ninguém a não ser de mim mesma e livre para seguir o meu próprio destino! Passei a acreditar que somos todos donos de nossos caminhos e que qualquer aceno de martirização é coisa de quem ou nem tentou ou não o fez com suficiente empenho e paixão – algo que obviamente não era o meu caso jamais. Afinal, eu Tayná, era a toda poderosa da cocada preta!

Como o ser humano é um bicho tendencialmente egoísta, o feminismo apareceu na minha vida quando o calo apertou para o meu lado! Embora eu sempre tenha trabalhado, tido uma carreira envolvente e ascendente sem que isso fosse um problema no meu relacionamento amoroso (ao contrário, meu marido sempre me apoiou como poucos!), nunca havia sofrido na pele o julgamento da sociedade quanto ao que se espera de uma mulher… até que resolvi aceitar uma proposta de trabalho que me levaria a morar em uma cidade diferente da do meu marido.

Bem, ele não queria largar seu emprego e eu não queria perder uma chance que considerava crucial para minha carreira então decidimos encarar o desafio do relacionamento à distância e pimba! Como que por mágica o julgamento começou a cair sobre mim como se eu fosse a pior pessoa do universo! E nem eu, A toda poderosa, era capaz de engolir ou de responder à altura quando começaram a me encurralar com “Você vai deixar seu marido aqui sozinho?” “Você não tem medo de ele arrumar outra?” “O casamento é mais importante do que a carreira!” “Dinheiro não é tudo! Não se acham homens bons todos os dias por aí!”. Essas foram algumas das frases que eu ouvia ao anunciar a nossa decisão (já que a decisão foi conjunta!). Em nenhum momento meu marido foi questionado por não me acompanhar! Em nenhum momento o fato de eu ter uma carreira, àquela época, mais expoente do que a dele foi ponderado! O recado da sociedade era claro: “Agora chega! Você já está indo longe demais! Não esqueça que a sua principal função como mulher é cuidar do seu homem!”. E aquilo perdurou durante os quase três anos em que fiquei em São Paulo.

E não parou por aí! Ao chegar em São Paulo na nova empresa, me deparei com um universo de trabalho totalmente diferente do que eu estava acostumada. Só havia homens nas posições de liderança e as mulheres que tinham conseguido “chegar lá” haviam feito renuncias enormes na sua vida pessoal, além de terem um perfil super distante do meu. Comecei a olhar para o lado, para outras empresas, para as minhas amigas e amigos e a perceber que a maioria das mulheres que eu considerava bem sucedidas ou estavam sozinhas ou estavam esgotadas física e emocionalmente. Não bastasse isso, sempre sentia sobre mim o olhar de questionamento: “para quem será que ela deu?” “você não acha que está no lugar errado?”. Era interrompida o tempo todo, poucos me levavam a sério desde o início e os olhares ao decote eram tão constrangedores que mal conseguia concluir meu raciocínio. Cheguei à conclusão que por mais fodona que eu fosse precisava urgentemente de mais mulheres nesse ambiente para ter uma carreira duradoura!

Quando a Marissa Meyer foi anunciada como nova CEO do Yahoo!, ainda por cima grávida, não pude deixar de comemorar! “Uhuuuuu ponto para nós”, pensei!

Aí ela anunciou que tiraria apenas duas semanas de licença maternidade e a Anne-Marie Slaughter publicou seu polêmico texto afirmando que nós mulheres nunca poderíamos “ter tudo” e que inevitavelmente teríamos que escolher entre carreira e maternidade (e que provavelmente deveríamos escolher a segunda!) e o meu mundo veio abaixo de novo! Todas as minhas amigas estavam compartilhando e endossando esse texto. Algumas me mandaram por e-mail e Whatsapp o link que para elas parecia um grito de alivio enquanto que para mim a cada vez que o lia (e não foram poucas!) meu coração se enchia de tristeza! Como já falei aqui, eu nunca sonhei em ser mãe! Mas sim, eu sonhava desde sempre com a minha carreira e, ainda que secretamente para evitar maiores julgamentos, sonhava com alguém que me dissesse que seria possível conciliar as duas coisas.

Foi então que, nas minhas andanças aeroportuárias pela LaSelva, me deparo com o livro da Sheryl Sandberg. O trajeto era o usual CGH-CNF que envolvia mais uma hora de carro para chegar em Contagem. E foi nesse dia que a minha visão sobre o feminismo começou a mudar completamente! Não parava de copiar trechos do livro e mandar para minhas amigas!

Praticamente recitei o livro inteiro assim que cheguei em casa no final de semana para o meu marido e não conseguia parar de falar sobre ele com qualquer pessoa que eu encontrasse! Me senti aquelas pessoas que dizem ter encontrado Jesus e não conseguem falar de outra coisa quando encontram alguém que ainda se encontra nas “trevas”.

Ali, naquele livro, pareciam estar as respostas a todos os meus anseios daquele momento. Se o que Sheryl-minha-mais-nova-musa estava falando era feminismo então eu era feminista! Finalmente entendi que a resposta não estava na minha adequação ou não ao sistema e à empresa mas na adequação desse sistema exclusionista às nossas necessidades como mulheres.

As coisas tinham que mudar! E eu não iria ficar esperando de braços cruzados por essa mudança!

Pensamentos do passado passaram a me assombrar e me senti a pior mulher do mundo! Não sabia ao certo como responder a várias questões ou como encaixar o feminismo e o fato de que biologicamente homens e mulheres são de fato diferentes… não sabia justificar o porquê pode ser economicamente viável e mais correto contratar uma mulher que pode vir a sair de licença dali a 9 meses ou menos.

Comecei a perceber e observar conceitos machistas diariamente em coisas que antes eu achava apenas incomodas e desagradáveis mas “normais” e graças à Sheryl eu entendi que nada mais eram do que manifestações do patriarcado (embora ela não use exatamente essa palavra).

Parecia que tinham tirado uma venda dos meus olhos e só agora eu enxergava o mundo como ele era! Comecei a não aceitar mais piadinhas e gracejos que antes eu deixava passar. Passei a censurar amigas e amigos que julgavam mulheres “de TPM” ou “mal comidas”, ou ainda comentários maldosos sobre uma mulher “ter que ter dado para alguém por estar onde está”.

De toda essa turbulenta reflexão surgiu em mim o desejo de saber mais e mais e mais. Porque se é verdade que o empoderamento é uma chave que só abre de dentro para fora, é também verdade que é um caminho sem volta!

Revi completamente meu conceito sobre escolhas e oportunidades. Comecei a pesquisar, a ler sobre feminismo, a ver vídeos como este, este, este e mais este, dentre tantos outros e basicamente passei a questionar TUDO o que eu pensava e acreditava sobre (des)igualdade de gênero.

E foi assim que um dia, ao ouvir lamentações parecidas com as minhas de uma colega quanto ao mercado de trabalho para logo após ela emendar um julgamento a uma mulher “dada” tive um estalo! Eureca! “É isso” pensei! O machismo que nos fode no trabalho é o mesmo que controla a nossa sexualidade, que abusa das mulheres vulneráveis e que nos coloca como corpos e objetos ambulantes prontas a satisfazer alguma necessidade masculina ou dos filhos! Corpos! Não almas! Tetas! Não seios! Bundas! Não mentes! É o mesmo veneno mas estamos tentando usar soros diferentes!

Não haverá igualdade no mercado de trabalho enquanto não houver igualdade na sexualidade. Enquanto meninas tiverem que brincar de bonecas e usarem rosa e homens não puderem chorar, não teremos as mesmas oportunidades em setor nenhum! Enquanto não soubermos que o mesmo machismo que mata é aquele nos faz ganhar menos não poderemos combate-lo! E enquanto não nos unirmos como mulheres, como irmãs e como parceiras, continuaremos relegadas à condição de desigualdade que nos assola a cada uma dentro de sua realidade peculiar.

Ocorre que eu e a maioria das mulheres do meu convívio, que não estão no movimento feminista e nem se declaram como tal, ao contrário morrem de preguiça das “feminazi”, temos (no meu caso tinha!) dificuldade em enxergar isso! Queremos igualdade no trabalho, mas não achamos que nossa filha possa ter liberdade sexual (mas o filho sim!), sentar de perna aberta ou andar de roupa curta por aí!

Eu precisava e preciso de mais conhecimento, de mais estudo e de mais fundamento para convencer mais e mais mulheres, já que todo esse conhecimento exige análise crítica e distanciamento. Após muitos meses matutando criei então o GLF – Grupo de leitura sobre estudos femininos e feministas com uma missão audaciosa: refletir e debater o feminismo sob uma perspectiva livre de preconceitos e de verdades absolutas e permeada de respeito de modo a contribuir para a transformação individual de mulheres, organizações e comunidades em células mais humanas, sustentáveis, harmoniosas através da melhora da situação da mulher no ambiente familiar, profissional e social.

Assim eu saí do armário e me assumi feminista! Porque feminismo não é o oposto do machismo! Feminismo é empoderamento! É protagonismo! Não é apenas querer os mesmos salários e oportunidades! Ser feminista é compreender que a igualdade não irá existir enquanto o inconsciente coletivo não revisar o seu conceito de gênero e as expectativas em relação a cada ser humano portador de um cromossoma X ou Y.

Feminismo é lutar para que homens e mulheres e todos os seres humanos que habitam este planeta possam ser vistos de maneira justa e digna! Exige muito trabalho interno de ruptura com conceitos históricos e inconscientes enraizado no mais profundo lugar de nossas identidades. Não é só não se depilar e ir na Marcha das Vadias.

Feminismo é o que eu sou! Feminismo é o que eu quero para a minha filha e filho! Feminismo é amor!

Post originalmente publicado em http://www.selfdh.com

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