O novo documentário de Amy Adrion, ‘Half the Picture’ , ainda sem tradução para o português, expõe o mundo do entretenimento.
Por
O novo documentário Half the Picture (Pela metade, em tradução livre) começa com um discurso inspirador da atriz Jessica Chastain, no qual ela fala da falta de representação das mulheres no Festival de Cinema de Cannes de 2017.
“É a primeira vez que assisto a 20 filmes em 10 dias”, diz Chastain para uma plateia de jurados do festival e jornalistas. “A única coisa que tirei da experiência foi como o mundo vê as mulheres, baseada nas personagens que vi representadas. Foi bem perturbador… Espero que, quando tivermos mais mulheres contando histórias, teremos mais das mulheres que vejo no meu dia-a-dia. Mulheres proativas, agentes, que fazem mais que simplesmente reagir aos homens à sua volta.”
A declaração de Chastain deu o tom para o primeiro longa de Amy Adrion, um filme sobre o viés de gênero na indústria do entretenimento e como o problema atrapalha a carreira das mulheres diretoras.
O documentário, que ainda não tem distribuidora depois da estreia no Festival de Cinema de Sundance, no mês passado, contém entrevistas com algumas das diretoras e produtoras de séries mais bem-sucedidas do momento: Ava DuVernay, Catherine Hardwicke, Jill Soloway, Sam Taylor-Johnson, Lena Dunham, Mary Harron, Patricia Riggen e Gina Prince-Bythewood.
Adrion e sua equipe de produção, em sua maioria composta por mulheres, começaram a entrevistar essas mulheres há mais de dois anos e viram com assombro o surgimento dos movimentos #MeToo e TimesUp, que colocaram no centro da agenda o desequilíbrio de poder de que trata o filme. Para Adrion, esse desequilíbrio sempre foi muito grande, muito antes dos relatos de abusos cometidos por Harvey Weinstein virarem manchete e desencadearem uma torrente de acusações contra homens poderosos.
Em resumo: comparando com seus pares homens (e brancos), as mulheres têm menos oportunidades de carreira no cinema e enfrentam muito mais obstáculospara produzir obras que já receberam o sinal verde. Em 2016, somente 7% dos 250 filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos foram dirigidos por mulheres. (As coisas são um pouco melhores na TV: 32% dos diretores que estrearam na temporada 2016-2017 eram mulheres.) Consequentemente, as mulheres recebem orçamentos para suas produções, e seus filmes passam em apenas um terço das salas, em comparação com os filmes dirigidos por homens, segundo estudo citado em 2016 pela Hollywood Reporter.
Por sorte, as pessoas estão começando a prestar atenção nessas estatísticas – e no ambiente de trabalho responsável por elas –, graças a mulheres como Adrion.
“Temos sorte porque a conscientização sobre representação e mulheres diretoras está crescendo”, disse Adrion ao HuffPost numa entrevista realizada em Park City, onde acontece o festival de Sundance. “Sou diretora e tinha dificuldade de fazer acontecer meus projetos. Estava lendo os estudos e estatísticas que mostravam os números relativos às minhas colegas. É muito desanimador.”
“Conheço muitas diretoras de sucesso com quem trabalhei”, continuou ela. “E pensei: ‘Será que consigo sentar com elas e perguntar como elas conseguiram fazer seu primeiro filme? Como elas chegaram lá?’ Foi assim que tudo começou.”
Ao longo das entrevistas, Adrion conversou com diretoras que contaram história muito parecidas, todas elas falando de “superar o ‘não'” na indústria. Para muitas, o sucesso no mundo dos homens brancos, como diz Catherine Hardwicke, diretora de “Aos Treze” e “Crepúsculo”, envolve um esforço persistente para manter controle sobre o próprio trabalho.
Jill Soloway, por exemplo, diz que antes de ter controle total sobre a série Transparent, da Amazon, sempre reclamava do jeito que apareciam as coisas que ela tinha escrito. Após ver diretores (quase sempre homens) trazer à vida os roteiros que ela escreveu para séries como “Six Feet Under” e “United States of Tara”, Soloway concluiu que a melhor – e única – maneira de realmente ter controle sobre um projeto seria sendo roteirista, produtora e diretora.
Chegar a esse ponto, entretanto, leva tempo. Ava DuVernay só teve a chance de dirigir um filme de 100 milhões de dólares de orçamento (Uma Dobra no Tempo, que estreia este ano) depois de brigar muito por filmes como Selma e A 13ª Emenda.
“Encarei tudo com [uma atitude de] vou fazer sozinha”, diz DuVernay a Adrion. “‘Não preciso de você. Se quiser participar, ótimo, mas não preciso de você porque vai acontecer de um jeito ou de outro’, era minha armadura na época.”
Mas, mesmo quando estão no comando, muitas mulheres afirmam que os homens da equipe continuam a desafiar sua autoridade. Em Half the Picture, Lena Dunham lembra como um colega tentou mudar a direção de um videoclipe que ela estava dirigindo. Hoje, Dunham defende seu trabalho “com unhas e dentes”.
E também existem os obstáculos adicionais que as mulheres enfrentam quando se tornam mães. Miranda July, de Eu, Você e Todos Nós chora quando descreve como é muito mais fácil para seu marido, o também diretor Mike Mills, sair para o trabalho.
“Eu fiquei meio assim [de perguntar sobre maternidade] porque ninguém pergunta a James Cameron o que ele faz com os quatro filhos quando está produzindo Avatar 2“, disse Adrion ao HuffPost. “Mas tenho dois meninos pequenos e administro a família e minha carreira, e fiquei agradecida pelo tempo que as mulheres dedicaram a nós, e também por suas respostas sinceras.”
Você consegue fazer tudo. Mas vai ser difícil para caralho!Sam Taylor-Johnson, diretora de “Cinquenta Tons de Cinza”, em “Half the Picture”.
Mesmo quando homens e mulheres estão em posições similares na indústria do cinema, com controle completo de seu trabalho, aparece inevitavelmente a questão do salário. Zack Snyder pode esperar um pagamento de cerca de 10 milhões de dólares por um filme de super-heroi, mas Patty Jenkins recebeu 1 milhão de dólares por “Mulher Maravilha” – e só recentemente a diretora teve um aumento para filmar a continuação.
No filme de Adrion, Hardwicke conta como teve de abrir mão de 57% de seu pagamento para dirigir “Chapeuzinho Vermelho” para a Warner Bros., depois do imenso sucesso de “Twilight”, que arrecadou 393 milhões de dólares na bilheteria. O estúdio pediu que ela aceitasse um salário menor quando o orçamento filme, estrelado por Amanda Seyfried, foi cortado de 75 milhões para 40 milhões de dólares.
É por isso que Penelope Spheeris, diretora de Quanto Mais Idiota Melhor (a parte engraçada de Half the Picture) decidiu trocar a cadeira de diretora pelas reformas de casas. Spheeris diz que estava cansada de “ouvir tanta merda” e de se sentir “menor” numa indústria dominada pelo sexo oposto.
“O sexismo que muitas diretoras enfrentam é simplesmente não ver seus filmes valorizados”, diz Adrion.
Muitas vezes, o valor é expressado por meio de premiações. Este ano, Natalie Portman apresentou os indicados para o Globo de Ouro de melhor direção com um improviso poderoso, que resumiu como as mulheres são tratadas em premiações do tipo. Ao lado de Ron Howard, ela disse: “Eis os indicados, todos homens”.
“Com certeza estou sentindo uma maré de confiança, e estamos nos ajudando umas às outras”, diz Adrion. “Como a coisa da Natalie Portman no Globo de Ouro – foi uma decisão corajosa. E muitas mulheres na plateia e em casa pensaram: ‘OK, se Natalie Portman vai se expor assim, o que posso fazer para ser mais corajosa e mais forte?”
Portman não é a única mulher a se manifestar. Atrizes como Uma Thurman e Eva Longoria falaram de sexismo, ataques e assédio sexual e disparidade de salários. São sinais de esperança para as mulheres de Hollywood e além.
Mas por que um documentário de timing tão perfeito ainda não tem distribuição?
O filme de Adrion não só trata do sexismo entre diretores de cinema; ele também fala da cultura que cerca a indústria do cinema como um todo, incluindo a crítica (em grande parte composta por homens), os vendedores e os distribuidores, e os executivos dos estúdios. Será que eles não têm interesse por um filme que empodera as mulheres atrás das câmeras? A esperança é que não seja esse o motivo.
“Aprecio a conversa sobre as histórias das mulheres”, diz Adrion, “[Espero que] nosso filme contribua para essa conversa e represente um argumento emocional da importância de ouvir e dar valor às histórias dessas mulheres.”