Como a polícia brasileira mata tanto num país em tempos de paz?

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulga nesta terça-feira um relatório atestando que policiais brasileiros mataram pelo menos 11.197 pessoas nos últimos cinco anos. Como comparação, a polícia norte-americana precisa de 30 anos para abater o mesmo contingente.

Por:   no, DCM

O dado “pelo menos 11.197” traz essa imprecisão devido a maioria dos estados brasileiros não ter um controle das mortes praticadas por policiais em serviço (em serviço, nem vamos considerar as mortes no mercado paralelo). Apenas 11 dos 27 estados apresentaram levantamentos aos pesquisadores do fórum. “A maioria das polícias do país não tem a prática de fazer acompanhamento na letalidade policial. Há uma subnotificação. Sabemos que é bem maior do está registrado”, disse a diretora-executiva Samira Bueno.

Como se chega a números estarrecedores como esse num país em tempos de paz?

Há uma guerra não declarada contra a pobreza, travestida de guerra contra a criminalidade. Os números apontam claramente para um alvo da periferia, masculino, negro e jovem. Estudo sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar já divulgado aqui, aponta que 61% das vítimas da polícia são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. Dados referentes a São Paulo que certamente não se alteram muito nos demais estados.

A despeito de todo o debate sobre o treinamento que as polícias recebem, é evidente que chegou-se a um patamar de violência envolvendo policiais que torna urgente discutir e implementar mudanças severas na disposição da sociedade. A questão é tal forma complexa que passa inclusive pelo problema de moradia. A maioria das mortes ocorre na periferia, longe dos olhos e das lentes das câmeras. Uma melhor ocupação e distribuição das moradias em áreas mais centrais colaboraria para atenuar o problema. Ou alguém duvida que um PM não se sinta intimidado numa situação onde centenas de pessoas estão testemunhando, ou que ele possa atingir sem querer um bacana?

Vide as diferenças de repercussão quando uma reintegração de posse ocorre com truculência numa área central e quando ocorre na periferia. Vide a repercussão de agressões ocorridas por PMs em manifestações em locais como a avenida Paulista em comparação aos tiros disparados na periferia. E lá as balas não são de borracha. Logo nos primeiros minutos do filme “Colors”, clássico dos anos 80 sobre a violência entre gangues em Los Angeles, um ainda jovem policial Sean Penn aborda uma possível testemunha de um assassinato que se nega a dizer o que viu. Seu parceiro, Robert Duvall, decreta “vamos embora, deixe ela em paz, ela precisa viver aqui”. Quando se atinge esse grau de descontrole, cria-se um círculo vicioso e uma lacuna de poder a ser preenchida. Essa segregação geográfica tem sido mortal.

Um outro aspecto determinante nessa guerra cuja política necessita de um debate mais atualizado e franco é o da criminalização das drogas. Carl Hart, neurocientista escreve em seu livro “Um preço Muito Alto” que “a histeria emocional decorrente da péssima informação a respeito das drogas encobre os verdadeiros problemas enfrentados pelas pessoas marginalizadas, o que também contribui para graves equívocos na utilização de recursos públicos já bastante limitados”.

Seu livro, indispensável, demonstra como o estigma criado na sociedade arrebenta no lado mais fraco da corda, com estudos que contestam desde o grau de criação de dependência até os efeitos de uma detenção em idade precoce.

Essa batalha não pode mais ser travada dessa maneira, ela é obviamente favorável apenas à industria armamentista. Não tem nenhuma preocupação com a saúde (apenas para ilustrar, utilizo mais um dado do livro de Hart que aponta um aumento de 3.500% nos gastos de combate às drogas entre 1970 e 2011 nos EUA e isso em nada alterou o consumo de maconha, cocaína e heroína). Apenas cria situações que entram para as estatísticas como crimes relacionados ao tráfico e consumo de drogas. Seria como creditar toda a violência ocorrida dirante os anos da lei seca nos EUA ao alcoolismo.

Os casos como do pedreiro Amarildo ou do menino Douglas Rodrigues que tornou célebre a frase “por que o senhor atirou em mim?” são emblemáticos de um quadro que não pode ser ignorado como vêm sendo. O tema enseja uma centena de dúvidas e exaltará os ânimos entre alas conservadoras e progressistas. Mas única certeza é a de que, como está, não pode continuar.

 

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