É justo dizer que a política e a ciência estão entre os principais motores de progresso da espécie humana. Afinal, nós evoluímos como sociedade quando aprendemos a nos organizar coletivamente e também quando aprendemos a organizar o mundo natural. Embora esses sejam campos onde desenvolvemos vanguarda, eles carregam também um lado profundamente retrógrado: são muito masculinos, muito brancos e muito heteronormativos.
Para analisar formas de navegar entre os dois polos deste universo, o neurocientista Stevens Rehen recebe no Trip Com Ciência Marcelle Soares-Santos, física, professora da Universidade de Michigan e pesquisadora no Fermi National Accelerator Laboratory, um dos mais importantes laboratórios de física de partículas do mundo. Também participa do papo a deputada estadual, educadora e artista Erica Malunguinho, a primeira mulher trans e negra a ser empossada no Brasil, além de fundadora o Aparelha Luzia, centro cultural voltado ao movimento negro. Para ouvir o podcast, clique no play abaixo, visite nossa página no Spotify ou leia um trecho da conversa na sequência.
Stevens Rehen. Erica, para começar, de onde veio o seu interesse pela política?
Erica Malunguinho. A princípio, a gente deveria pensar o que é a política. Política é agir na coletividade, o que eu sempre fiz. Outra coisa importante da política: eu estou viva porque muita gente política lutou antes de mim. Sou filha da luta abolicionista, da luta dos quilombos, das lutas indígenas e LGBTQI+. Então meu interesse pela política se dá porque a minha vida corresponde à vida de outras pessoas que se sacrificaram e se mantiveram firmes para que eu pudesse permanecer viva. Eu sou um ser político porque eu estou agindo.
Marcelle, e o seu interesse pela ciência e pela física, como surgiu?
Marcelle Soares-Santos. Sabe aquelas crianças que insistem em perguntar o porquê de tudo? Costumo dizer que nunca superei essa fase e que continuo querendo saber cada vez mais. E quando consigo uma resposta, ela automaticamente abre uma nova linha de questionamentos. Fazer perguntas é parte da natureza humana. Antes de saber que existia um campo de pesquisa científica chamado física, eu já estava fascinada por essa área.
Um dos problemas da falta de diversidade em qualquer ambiente é a ausência de referências para jovens de determinados grupos e isso pode fazer com que eles não se imaginem ocupando determinados lugares. Como foi comunicar para sua família o desejo de fazer especificamente física, que é um curso um pouco peculiar? Todas as pessoas que me conheciam um pouco não se surpreenderam com a minha decisão de fazer física – já estava na cara que esse era o meu caminho. Mas lembro, sim, de momentos de questionamento pessoal. Cheguei a pensar em talvez seguir uma carreira mais tradicional, como a medicina, por exemplo. Eu sabia que tinha pontuação suficiente para passar. No entanto, logo depois lembrei de uma conversa que tive com meu pai, quando ele me disse que foi pobre demais para poder escolher uma profissão. Seguir os meus sonhos, de alguma maneira, era uma forma de homenagear os os sacrifícios e as dificuldades que meus pais enfrentaram.
Erica, você comentou que todos nós somos seres políticos, mas pensando nessa sua entrada na política institucional, quando isso começou a surgir mais fortemente?
Erica. Fiquei muito emocionada com a fala da Marcelle, porque na maioria das famílias negras é isso o que acontece: não importa o que exatamente eu venha a fazer profissionalmente desde que consiga me manter economicamente e ajudar a família. Essa noção de sonho é muito distante das pessoas pretas. Como é que eu entro na política institucional? Exatamente por essa destituição do pensar sobre mim, sobre meus próprios sonhos, e por estar implicada com o bem-estar coletivo. Sempre pensei em gênero, em raça, minha formação sempre foi nesse sentido. Ir para a política significava a sistematização de um processo. Se você me perguntar qual meu sonho, vou pensar e tentar descobrir qual é, mas sei que ele está completamente atrelado ao bem-estar coletivo. E para isso você precisa estar na política.
Queria agora explorar um pouco mais essa questão do cargo público. O corpo negro feminino infelizmente é muito sujeito à violência e o corpo trans mais ainda, especialmente no Brasil. Quando você se coloca no cargo público, potencializa esse risco. Isso passa pela sua cabeça?
Erica. Sabe quando você já está calejada? Já levei tanta lambada na vida, na universidade, nesse processo todo, que mais uma não é nada. Não é que eu não me importe, mas não me surpreende mais. Ainda assim eu quero dizer e afirmar que ali é um lugar hostil, inóspito, para qualquer corpo que foge à normatividade. É óbvio que mexe comigo quando um deputado usa a tribuna para falar que se a mãe ou a irmã encontrarem uma travesti no banheiro, ele tira a tapa e chama a polícia. Mas existem outras violências que são mais sofisticadas: todo projeto de lei meu é barrado, por exemplo. Viu meu nome e já achou que é a revolução travesti que está escrita ali. Esse tipo de violência é mais desafiador, me obriga a demonstrar minha capacidade intelectual, de organização, de ajustar um discurso político que prevê que há interlocutores que devem ser convencidos e que estão completamente distantes da minha vivência.
Marcelle, quais são suas estratégias para navegar o ambiente científico como mulher negra?
Marcelle. É difícil às vezes articular quais são as estratégias porque muitas delas você desenvolve intuitivamente, sem realmente pensar. O que é efetivo em minimizar um pouco esses efeitos, realmente, é buscar essa excelência acadêmica e comunicar esse sucesso, os resultados, de uma maneira que seja efetiva. Prezo muito isso e procuro fazer com muito cuidado os trabalhos que publico. Outra estratégia foi encontrar mentores, não necessariamente que se parecem comigo, mas que estão abertos a apoiar e dar suporte para uma pessoa que seja motivada. Identificar essas pessoas foi outra coisa que me ajudou muito.