Por: FÁTIMA OLIVEIRA
Há uns três meses finalizei um livro. Estou lambendo a cria no baú virtual, sem pressa para a publicação, tipo “Ando devagar porque já tive pressa”… Meu processo de criação de um romance é uma gravidez: carrego em meu ventre mental, meses a fio, uma companhia de aventuras e desventuras criativas. Cortar o cordão umbilical é uma alegria dolorosa que agora compartilho.
“Então, Deixa Chover” é um romance que exala cheiros do cio da terra e expõe as entranhas da maternidade que incursiona pelos meandros do sofrimento mental, mas pode ser tipificado como um ecorromance que conta a saga de plantar alimentos livres de venenos e recuperar sementes criolas.
É um baú de memórias de Maria e seu filho Henrique, que nasceu, conforme ela, sem o “radar da moralidade”, que em psiquiatrês é o Transtorno de Espectro Bipolar. São cortantes os fragmentos da conversa com um psiquiatra: “…a capacidade moral é genética. Pessoas como nossos filhos nascem sem capacidade moral! Tanto é que eles fazem as pessoas sofrerem, quando crianças são cruéis com animais e não sentem remorsos, porque são incapazes de sentir culpa!… As questões da moralidade, de fato, são culturais. Por suposto, todos os seres humanos as apreenderiam. Há seres humanos incapazes de apreender conteúdos culturais morais…”.
No capítulo 1, “Vivo de partida”, Maria inicia dizendo: “Eu tive um sonho. Um dia iria ao Festival de Cannes. Só para sentir o clima do mundo cinematográfico, que amo. Nunca fui. Jamais tive dinheiro suficiente para tanto. Talvez até pudesse ter feito algumas economias e ter ido lá, pelo menos uma vez. Mas, quando eu podia ganhar dinheiro para ir, estava correndo atrás de outras coisas, outros sonhos. E o sonho de Cannes foi ficando longe, tão longe que se perdeu. E fui tocando a vida…”.
Para Maria: “A alternância de euforia com depressão é assim como um mundo que cai aos nossos pés aos pedaços… era preciso ir navegando, ao sabor das ondas da loucura… Como as ondas da loucura permitem. Assim gira o mundo de quem tem um louco em casa… Se algum dia eu escrevesse um livro, seria sobre a minha estranha, grande e profunda capacidade de renascer das cinzas. Eu sou um protótipo de Fênix. Como na lenda. Sou incansável na arte de sobreviver. Fui bem-sucedida nas trilhas que percorri. Parece estranho? Ou é que os conceitos de sucesso e de vitória são polissêmicos, pois cada um comporta multiplicidade de olhares?”.
E narra histórias de amores. Ouçamos Henrique: “Ô tia Dedé, estou quase suspendendo o item dos namorados da mamãe da festa dela. Por quê? Tia Dedé, mamãe é o exemplo perfeito da fila que anda. Moça do céu, a lista dela é de 27 ex-namorados, amantes, maridos, ou algo parecido. Mas quatro já partiram. São 22 vivos, pois um dos 27 foi repeteco”.
Em “Então, Deixa Chover”, as lembranças brotam como os cogumelos e as 11 horas, as flores preferidas de Maria: “Talvez adore 11 horas porque tenho pressa em ver resultados. Ela é uma planta rasteira de fácil cultivo e de crescimento rápido. Dá gosto plantá-la porque rapidinho dá flores. E sua floração é abundante. Nasce e cresce em qualquer lugar, até em locais entre as pedras. O nome, 11 horas, é porque suas flores se abrem por volta das 11 horas, sob o sol forte, voltando a se fechar no decorrer do dia. Em alguns lugares presentear alguém com 11 horas é uma confissão de amor”.
“Então, Deixa Chover” é também uma declaração de amor.
Fonte: O Tempo