A lavadeira Joana Josefina Evaristo só encontrava sossego quando concluía que os filhos teriam a melhor educação possível.
Seria bem mais fácil se as crianças frequentassem um dos grupos escolares próximos à favela do Pindura Saia, na zona sul de Belo Horizonte, onde a família vivia em meados do século 20. Mas Joana conseguiu inscrever os filhos no ensino primário da tradicional escola estadual Barão do Rio Branco, situada no bairro dos Funcionários, uma das áreas mais valorizadas da capital mineira.
Filha de Joana e segunda de nove irmãos, Maria da Conceição Evaristo de Brito se lembrou da escola em um evento que reuniu escritoras mineiras, em 2009. A Barão do Rio Branco, recordou-se a autora, dividia-se basicamente em duas partes, o pavimento principal e os porões.
“Passei o curso primário, quase todo, desejando ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio”, disse a romancista, contista e poeta que, aos 77 anos, conquista o Prêmio Todas na categoria Cultura.
“Ao ser muito bem aprovada da terceira para a quarta série, para minha alegria fui colocada em uma sala do andar superior. Situação que desgostou alguns professores. Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada, incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros.”
Desde então, Conceição jamais aceitou uma mentalidade que ainda persiste em boa parte da sociedade brasileira, a de que pessoas como ela não poderiam ocupar espaços de prestígio.
Eu não estou aqui sozinha, eu cheguei por força coletiva de homens e mulheres negras, notadamente de mulheres negrasConceição Evaristo
Escritora
Quem poderia imaginar que aquela garota de BH venceria o Juca Pato de intelectual do ano, entregue no último mês de outubro? Pela primeira vez, o prêmio criado há mais de seis décadas pela União Brasileira de Escritores (UBE) foi dado a uma mulher negra.
Quem poderia imaginar que seria homenageada com três títulos de Doutor Honoris Causa, a distinção máxima concedida por uma universidade? A autora de romances, como “Canção para Ninar Menino Grande” (2022), e volumes de contos, como “Olhos d´Água” (2014), foi condecorada pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), pela Ufob (Universidade Federal do Oeste da Bahia) e pelo Instituto Federal do Sul de Minas.
Em 2017, Conceição foi celebrada na mesa de encerramento da 15ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), sob curadoria de Josélia Aguiar. “Este lugar é nosso por direito”, disse, sob aplausos, em sua fala inicial.
“Eu não estou aqui sozinha, eu cheguei por força coletiva de homens e mulheres negras, notadamente de mulheres negras”, afirmou. “Agora a Flip não tem jeito. Nós não vamos abrir mão do que foi conquistado.”
De fato, a festa de Paraty embarcava naquele período em um movimento provavelmente irreversível rumo à diversidade.
A consagração na Flip de 2017, um entre tantos momentos de reconhecimento da relevância da obra de Conceição nas últimas duas décadas, contrasta com as dificuldades vividas por ela no início da década de 1970.
Àquela altura, tinha acabado de concluir o curso normal no Instituto de Educação de Minas Gerais, mas não conseguia emprego como professora na sua cidade. “Entrar para a carreira de magistério naquela época dependia de ser indicado por alguém, e as nossas relações com as famílias importantes de Belo Horizonte estavam marcadas pela nossa condição de subalternidade”, afirmou em 2009.
Além disso, a família de Conceição e tantas outras sofriam com um “plano de desfavelamento”, que as deslocaram para uma região mais periférica da cidade.
Ela decidiu, então, se mudar para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em um concurso para lecionar na rede pública. Dava aulas e acompanhava outras: cursou letras na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e, mais tarde, aprimorou-se em um mestrado na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) sobre literatura negra, tema que também permeou seu doutorado na Uff (Universidade Federal Fluminense).
Além da rotina de professora e da dedicação aos estudos, esse período de aproximadamente quatro décadas –dos anos 1970 à década de 2000– foi marcado por sua ligação com os movimentos negros. “Eu aprendi mais com o movimento social do que com a academia”, disse ao portal Geledés em 2021. “Devo muito ao movimento social negro, o primeiro lugar que me acolheu como escritora”.
Em 1990, Conceição passou a publicar seus contos e suas poesias na série Cadernos Negros, organizada pelo Quilombhoje, coletivo de importância histórica para a literatura afro-brasileira. Treze anos depois, saiu seu primeiro romance, “Ponciá Vicêncio”, até hoje uma das suas obras mais lidas e comentadas.
O Brasil via a ascensão de um escritora de prosa fluente, cuja leitura perspicaz da realidade do povo negro aparece costurada com a memória e a imaginação, como ficou comprovado nas publicações seguintes, como “Becos da Memória” (2006), outro romance, e “Insubmissas Lágrimas de Mulheres” (2011), livro de contos.
E ainda uma autora avessa a qualquer tipo de reducionismo, como ressaltou em uma entrevista à revista Veja em maio deste ano. “A minha história não é só nascer na favela. A minha história é o estudo, a pesquisa, a leitura, a consciência de que lido com a arte da palavra, é isso tudo.”
Conceição se mantém questionadora, como a menina da escola Barão do Rio Branco. Por essa e outras qualidades, seus leitores a agradecem.