Concurso de paródia propõe humor sem bullying: ‘Temos que rir do opressor e não do oprimido’, diz organizador

Enviado por / FonteO Globo, por Maria Fortuna

Humor sem bullying. Essa é a premissa do “Hoje eu vou parodiar”, concurso virtual idealizado pelo compositor e roteirista Edu Krieger e pela produtora cultural Danusa Carvalho, que oferece até R$ 2 mil em prêmios e arrecada fundos para profissionais da cultura em situação vulnerável na pandemia.

A ideia do festival, cujo resultado será divulgado nas redes sociais no dia 20 de agosto, é espantar o baixo astral da quarentena e estimular criatividade e protestos respeitosos de compositores profissionais, amadores ou aventureiros de plantão. O regulamento do concurso é categórico ao ameaçar com desclassificação imediata músicas que resvalem em preconceito. Até agora, 500 paródias foram inscritas sob essa condição: a de apresentar releituras cômicas de composições evitando que a ironia e o deboche inerentes ao estilo reforcem homofobia, racismo ou sexismo, por exemplo..

— A paródia sempre riu das minorias, dos oprimidos — lembra Krieger, citando como exemplo o “Concurso de Paródias” de Moacyr Franco, no SBT, na década de 1990. — Nenhuma daquelas músicas entraria em nosso festival. Era um tal de “Michael Jackson é gay”, “meu marido é corno porque é gordo”, “fulana dá para qualquer um”…

Ferramenta para mudança

O fato é que, nos últimos anos, o humor passou por transformações, e o velho caminho de fazer chacota com minorias ficou datado diante de tantos debates contemporâneos. E a paródia segue pelo mesmo rumo.

Claro que ainda existem humoristas alinhados com uma visão conservadora, que argumentam não poder haver limites para o humor, reclamam do politicamente correto e permanecem fazendo graça pautada no bullying.

— Esse discurso que se diz “censurado” e lamenta “ah, não se pode mais brincar com negão e viado” é coerente com quem não quer perceber que a sociedade contempla um padrão em detrimento de outros — observa Krieger, roteirista de humorísticos como “Tá no ar” e “Zorra”, da TV Globo, e notório parodiador com versões que fazem sucesso na internet. — O homofóbico e o racista é que são patéticos. Não há nada pior do que Donald Trump mencionando a Ku Klux Klan. Fazer o público rir desses alvos é uma ferramenta importante para uma mudança de rumo da sociedade em tempos reacionários.

Jurada do concurso, a cantora e atriz Késia Estácio define o veto do regulamento como “urgente e necessário”. Ela cita a conduta do Facebook e do Twitter, redes que estão derrubando páginas, perfis e grupos que disseminam discurso de ódio.

— Enquanto mulher negra tenho interesse nesse posicionamento. A música é uma ferramenta potente, que ninguém precisa sair de casa para consumir — afirma. — Racismo, quando não mata, enlouquece. Viver com o medo de ouvir algo do gênero é um tipo de morte. É bom saber que seria ouvida caso houvesse algo assim. Ser antirracista é isso, está nas nossas mãos também.

Rei das paródias, uma das atrações do programa “Sinta-se em casa” (do “Encontro” com Fátima Bernardes e do Globoplay), Marcelo Adnet é presidente do júri do concurso (junto com Tatá Werneck). Ele concorda que rir do opressor em vez de rir do oprimido é a nova regra do manual.

— Tínhamos a lógica de o alvo ser “a bicha”, “o flamenguista ladrão”. Hoje, há um foco nos políticos que declaram e praticam absurdos — exemplifica. — O humor tem se politizado, é uma arma poderosa e pode escolher os seus alvos.

Adnet diz que dar endereço certo à piada é o primeiro passo para a construção dela na direção oposta ao preconceito:

— Qual é a mensagem? Que desconstrução está propondo? É preciso ter essa bússola para a pancada ser clara. Quando se atira para todos os lados é um problema. E o preconceito mora aí. Procuro me informar e dialogar para não incorrer nele. O mundo evolui, e gente aprende que coisas antes consideradas toleráveis, hoje não são.

Autor do livro “A vítima tem sempre razão?”, que analisa, entre outras tretas, a polêmica das marchinhas de carnaval banidas de blocos porque reforçariam conteúdos ofensivos, o filósofo Francisco Bosco endossa a norma do festival:

— É evidente a pertinência da premissa de fundo: a língua é o lugar onde os preconceitos são naturalizados, transmitidos, e assim contribuem para a manutenção de estruturas sociais.

Para Bosco, não se trata de uma crença frívola de tentar, em vão, mudar a realidade, concreta, por meio da língua, abstrata.

— Na verdade, a realidade é feita de língua, a realidade concreta é feita da compreensão que as pessoas têm das relações sociais — argumenta. — Esse tipo de pedagogia social propositiva me parece muito mais adequada que as pedagogias sociais punitivas, como os cancelamentos.

Mulher (ainda?) no alvo

Mesmo deixando claro que preconceitos não serão tolerados, Krieger identificou entre as inscrições paródias que, em 2020, ainda optam pela ofensa à mulher. Talvez, analisa Krieger, porque a luta feminina por igualdade muitas vezes venha atrelada a outro movimentos mais explícitos para os machistas, como o antirracista e anti-homofóbico.

Para a atriz Maria Bopp, outra integrante do corpo do júri, há uma cultura tão introjetada sobre que papel a mulher deve ocupar na sociedade que até pessoas ditas progressistas reproduzem esses conceitos sem perceber.

— Há a visão limitada sobre o universo da mulher, que as classifica como naturalmente cuidadosas, maternais, doces — diz ela, que encarnou Bruna Surfistinha na TV e faz sucesso com a Blogueirinha do Fim do Mundo nas redes. — Vemos até gente de esquerda tendo cuidado para não ultrapassar limites de raça e sexualidade, mas passando do ponto no campo do gênero. Além disso, racismo e homofobia são crimes, já a luta da mulher ainda é vista como mimimi.

Se críticas à desconstrução de olhares machistas, homofóbicos e racistas são bem-vindas no concurso, o assunto mais recorrente das paródias já inscritas tem sido… coronavírus.

— Quarentena está bombando, e engloba desde o auxílio emergencial até como o álcool gel entrou em nossas vidas — diverte-se Krieger. — A postura negacionista do presidente diante da pandemia também tem sido citada, além de as músicas mostrarem que a palavra cloroquina está no vocabulário. Quem quiser fugir da concorrência, uma dica é evitar esses temas.

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