Se Filhas do Pó fosse uma grande produção hollywoodiana, repleta de atores famosos e visando prêmios, seria provavelmente rejeitada pelos críticos e pelo público. Sua estética é anacrônica, os atores declamam frases de efeito como no teatro clássico, as imagens são saturadas demais, a música – combinando tambores e harpas – romantiza cada cenário ou personagem. Em outras palavras, o projeto foge às regras do bom gosto da indústria e também do “cinema de arte” refinado de festivais como Cannes e Berlim.
No entanto, este é um filme independente, feito com recursos obviamente limitados, com menor responsabilidade de prestar contas a produtores. Passou despercebido quando foi lançado, em 1991, sendo resgatado muito mais tarde. O drama histórico dirigido por Julie Dash – o primeiro filme de uma cineasta negra a ser lançado comercialmente em seu país – mantém uma relação com a música, a natureza e as imagens mais próximas das origens africanas do que da apreciação comum nas Américas. Com financiamento norte-americano e britânico, ela viabilizou um filme de alma africana.
“Chegamos aqui acorrentados, e precisamos sobreviver. Há água e sal no nosso sangue”, afirma Nana Peazant (Cora Lee Day), descendente de escravos, e uma das protagonistas do roteiro coral. A história, passada em 1902, se concentra na autoridade de mulheres negras e na oposição entre tradição e modernidade, ou ainda entre o paganismo africano e o monoteísmo cristão das Américas. Na pequena região de Ibo Landing, historicamente relevante por ter sido palco de um suicídio em massa de negros fugindo à escravidão, as anciãs defendem a cura por plantas e entretêm uma relação mística com fenômenos naturais, enquanto as mulheres mais jovens, que conheceram o sul dos Estados Unidos, defendem unicamente a fé em Cristo.
A narrativa se desenvolve de modo rizomático. A princípio, a trama se desenvolve pelo olhar de uma garotinha que ainda não nasceu, contando a história de sua família como se viajasse no tempo. No entanto, a câmera às vezes adota o ponto de vista da matrona Nana Peazant, depois segue os dilemas de Eula Peazant (Alva Rogers), grávida após um estupro, e ainda acompanha o ponto de vista de Yellow Mary (Barbara-o), jovem “ocidentalizada” que retorna à terra dos antepassados. No meio do caminho, uma dezena de personagens também é abordada, aparecendo e desaparecendo da história quando convém à montagem.
Em termos de produção, Filhas do Pó resulta num conteúdo simples, porém embelezado ao máximo. A narrativa se desenvolve inteiramente nas praias de Ibo Landing, onde as mulheres, com seus vestidos impecavelmente brancos, caminham e conversam. Às vezes elas param perto do mar, às vezes descansam sobre os troncos de uma árvore. A direção de fotografia carrega nos tons amarelados, com a ajuda de uma trilha sonora lúdica e uma quantidade de câmeras lentas que remete à fantasia, à lenda. Como diz um personagem, é preciso “honrar as velhas almas”, das mulheres negras em particular. Por isso, a produção se constrói como fábula, estruturada em mensagens excessivamente claras e imagens ornadas para valorizar a história de pessoas esquecidas pela História.
Filme visto no X Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro de 2017.
Foto em destaque: Reprodução/ Adoro Cinema