“Continuamos nos tratando como os colonizadores nos tratavam”, diz escritor angolano Kalaf Epalanga

Atração da Flip neste ano, o músico, escritor e cronista falou com a GQ sobre kuduro, literatura, democracia, imigração e até Leandro e Leonardo

Por FELIPE BLUMEN, do GQ

Kalaf Epalanga (Foto: Pluma)

“Eu me apresento como escritor porque geralmente isso afugenta os curiosos”, brinca o angolano Kalaf Epalanga ao começar esta entrevista enquanto se preparava para participar da programação oficial da Flip, a festa literária de Paraty-RJ, que vai até o próximo domingo (14). “E também depende da circunstância. Se estou no meio de um monte de músicos, sou músico; se estou com escritores, sou escritor. Mas tudo para mim parte da escrita, eu escrevo canções e ser escritor é a coisa mais próxima daquilo que sinto”, diz.

 

A confusão vem dos muitos apelidos que o angolano radicado na Europa Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo ganhou: músico, poeta-cantor, cronista, agitador cultural. Não à toa. Autor de Também os brancos sabem dançar(Todavia, 2018) – livro meio autobiográfico que narra a saga de um músico angolano preso ao tentar entrar na Europa -, colaborador da GQ Portugal e integrante da banda de kuduro Buraka Som Sistema, ele reconhece o “privilégio” de ser um nômade entre gêneros e linguagens.

Para o evento literário, contudo, ele não vem somente como produtor de cultura, mas também como imigrante africano negro numa Europa que discute sua própria identidade. “Estamos nos tornando os bodes expiatórios da derrocada da democracia”, afirma. “As democracias, tais como existem hoje, estão se tornando obsoletas. O status quo reage a isso com resistência e nós, imigrantes, sofremos por tabela.”

Confira como foi a conversa:

GQ – Seu lado músico é kudurista. Como você se relaciona com o kuduro?

Kalaf Epalanga – O kuduro é essa coisa expansiva, colorida, extraordinária, jovem. Mas eu gostaria que se abordasse características mais técnicas do gênero, que olhassem para o processo de como os beats nascem. Por exemplo: eles produzem e já exportam a música em .mp3 porque é assim que ela vai ser consumida, nas caixas estouradas dos candongueiros, aquelas minivans típicas de Luanda [risos]. Há toda uma ciência por trás do kuduro.

GQ – Mas há visibilidade o suficiente?

Kalaf Epalanga – A indústria tem regras e ela não suporta aquela coisa bagunçada, né. Isso aconteceu com o funk também, que teve que se arrumar e consequentemente perdeu um pouco de suas características originais. Ainda não tem uma Anitta no kuduro, um produto exportável desse tamanho. Mas temos pontas de lança, como a Titica, que é maravilhosa.

GQ – Em uma crônica, você relembrou a importância de Pense em Mim, de Leandro e Leonardo, na sua adolescência. Por favor, explique.

Kalaf Epalanga – [Risos] Nas matinês tocava de tudo, geralmente mais kizomba. Mas Pense em Mim tocava também e a gente dançava aquilo. Era o momento de abraçar as meninas. É uma canção maravilhosa, eu adoro até hoje. Sem dúvida está no meu top 50 de canções românticas de todos os tempos.

GQ – Falando em Brasil, você já disse que um dos motivos de escrever Também os Brancos Sabem Dançar era “mostrar que o continente também é afetado pela descrença no sistema político, pelas redes sociais e pela economia”. Isso também vale para o Brasil, não? Você vem aqui e vê essa semelhança? 

Kalaf Epalanga – Todos nós ex-colonizados ainda vivemos as consequências disso. Continuam as discrepâncias sociais e o Brasil e Angola continuam a perpetuar o mesmo sistema colonial de pirâmide, em que o topo manda e o resto obedece. Curiosamente, ao contrário das sociedades que nos colonizaram. A gente chega lá e está tudo limpo, segurança social, aposentadoria, escola grátis. Por que a gente não copiou essas paradas? Continuamos nos tratando da maneira como eles nos tratavam.

GQ – Quando escritores africanos que vivem na Europa ou europeus de origem africana vêm à Flip fala-se muito em raízes. Você nasceu em Angola, morou em Lisboa e agora vive em Berlim. Onde estão as suas?

Kalaf Epalanga – As raízes estão dentro de mim. Vivo em Berlim e incorporo a cultura berlinense, mas essencialmente continuo pensando, sentindo e agindo como um angolano. Vou somando coisas na minha identidade que acho úteis e importantes, mas na essência eu não vejo outra referência maior do que o lugar em que nasci. Pessoas nascidas na diáspora, por exemplo, ainda carregam identidade africana mesmo nunca tendo colocado os pés lá. Então raiz é sem dúvida algo extraterritorial, é o que você colhe das pessoas que te educam e do que está ao seu redor. É um ponto não só geográfico, mas emocional.

GQ – Sair de Angola fez você se perceber mais angolano?

Kalaf Epalanga – Tem um provérbio, acho, que fala que quando você está diante de uma árvore, precisa se distanciar para ver o tamanho da floresta. É comum que pessoas que se distanciam de seu lugar de origem entendam de forma mais ampla o que são e de onde vêm. Você encara a floresta e percebe que ela é maior do que você imaginava, do que nossa casa, nossa rua, nosso terreiro, nossos orixás. As diásporas, sejam forçadas ou voluntárias, permitem esse processo de análise.

GQ – Você se considera um imigrante, um nômade ou um fruto da diáspora?

Kalaf Epalanga – Essencialmente sou um imigrante. Dependendo da sala em que estou, me digo ‘expat’, que é como os europeus gostam de se intitular quando migram para os países do hemisfério sul. Faço isso para desconstruir essa imagem do imigrante africano que só está naquele lugar porque não tinha outra saída, não tinha solução. Claro que às vezes é isso, mas os imigrantes são plurais, há várias espécies de imigração, involuntárias ou voluntárias.

GQ – E o que é ser um imigrante em 2019?

Kalaf Epalanga – Na Europa está difícil, estamos nos tornando os bodes expiatórios da derrocada da democracia. As democracias, tais como exitem hoje, estão se tornando obsoletas. Os valores, a ideologia democrática precisa se reinventar, adaptar, entender que as pessoas têm mais acesso a informação – ou desinformação – e ela não está conseguindo fazer isso. Agora que a fatura chegou vemos como a democracia se tornou refém do capitalismo. De repente, até os inimigos da democracia são capitalistas, então não interessa se forem autoritários desde que consigam criar riqueza e emprego. É falso que só regimes democráticos conseguem ser prósperos. Continuo a acreditar que é o único regime que se vale lutar por. Mas ao mesmo tempo ele precisa mudar, ser inclusivo, realmente democrático. Essa coisa de ser só homens, brancos e velhos não funciona. A democracia precisa da diferença, precisa dos LGBT, dos negros, das feministas, dos países do hemisfério sul. O status quo reage a isso com resistência e nós imigrantes sofremos por tabela.

GQ – Falando em mudanças, no seu próximo livro, Como criar crianças negras em Prenzlauer Berg, você se coloca autobiograficamente como pai. O que mudou na sua vida com a paternidade?

Kalaf Epalanga – Gosto de partir da minha experiência para analisar o mundo. Antes de ser pai, um dia de trabalho bem-sucedido para mim era escrever duas páginas por dia. Agora, quando consigo quatro horas sem interrupção já está ótimo [risos]. Estou mais focado na qualidade do meu tempo do que na quantidade de resultado e isso foi a paternidade que me trouxe.

GQ – O que você está lendo agora?

Kalaf Epalanga – Estou lendo dois livros ao mesmo tempo, influenciado por Paraty. O livro do Gaël [Faye, seu colega de mesa durante o evento], Meu Pequeno País, e o livro da Granda Kilomba, que já tinha lido em inglês e agora leio em português. O interessante em reler livros é que há coisas que não absorvemos por não estar no momento certo para colher aquela informação. Eu crescendo como escritor sou mais afetado pelo que a Grada escreve do que nunca. Como escritor homem com poder para impor uma opinião, porque eu tenho esse luxo e essa sorte, tenho que me confrontar com questões de gênero, me responsabilizar. A literatura nos permite isso, conversar com nós mesmos.

GQ – E o que está ouvindo agora?

Kalaf Epalanga – Eu só ouço música antiga, feita nos anos 60 e 70, ou algo feito pelos meus amigos [risos]. Ouço muito Rodrigo Amarante, que é um amigo meu. Ouço muiro rap também, mas por várias razões. Não há disco de rap que eu não escute por pelo menos meia hora. O rap é essencialmente um gênero musical de resistência. Mesmo o rap descartável, aquele do topo das paradas feito por milionários, tem essa característica. E só por isso merece ser ouvido.

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