Relembrar é viver, e o título deste artigo é um dos marcos da luta pela implementação efetiva da política de cotas raciais no Brasil.
Foi em 2012, após o julgamento da constitucionalidade das cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal, que organizações negras articuladas em torno do Comitê Contra o Genocídio da População Negra investiram em uma campanha ousada, pressionando o estado de São Paulo e o Governo Federal a adotarem a política nas universidades públicas.
A campanha, na época, recebeu diversas críticas pelo tom duro que adotava, mas cumpria um papel pedagógico de constranger setores que, mesmo superados os argumentos jurídicos e meritocráticos, seguiam se posicionando contrariamente às cotas raciais, embasados em um temor de que, com a adoção da política, o Brasil se dividisse entre brancos e negros (como se assim já não o fosse).
A luta pela adoção de cotas raciais no Brasil começou muito antes disso. O movimento negro brasileiro sempre compreendeu que a política de reserva de vagas para a população negra era essencial para o avanço nas condições de vida da população negra.
O Movimento Negro Unificado, por exemplo, desde a sua fundação, em 1978, já questionava a democracia racial e demandava a adoção de medidas para efetiva inclusão da população negra brasileira.
E foi a partir de todo esse contexto histórico, de luta e reivindicação dos movimentos negros brasileiros, que as cotas raciais foram adotadas no âmbito das universidades federais brasileiras, em 2012, e no âmbito do serviço público federal, em 2014.
Vale dizer que o caminho percorrido até a efetiva adoção da política consolidou uma robusta jurisprudência sobre a legalidade e a constitucionalidade da medida (ADPF 7654 e ADC 41), reafirmando que, ao adotar as cotas raciais, o Estado brasileiro não faz nada mais do que cumprir o mandamento constitucional que prevê, entre os seus princípios fundamentais, a igualdade.
Assim, dez anos após a sanção presidencial da lei que previa a adoção de cotas raciais no âmbito do serviço público no patamar de 20%, com vigência de dez anos, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar um novo projeto de lei.
O texto foi modificado: o procedimento de confirmação complementar à autodeclaração (bancas de hétero identificação) e a revisão da lei será em cinco, não mais em dez anos. Com isso, a matéria agora volta para o Senado.
Este projeto amplia o percentual de reserva de vagas para 30% e garante a continuidade da política. O que fundamenta a ampliação e a continuidade da política são os resultados da avaliação da política pública, que demonstraram a efetividade das ações afirmativas, mas não só isso, também a necessidade de sua ampliação para garantir que ela atinja a sua finalidade: contornar a desproporção racial nos cargos efetivos nas carreiras do serviço público federal.
Entre os dados mais expressivos, vale destacar as projeções realizadas pelo Ministério da Gestão e da Inovação que apontam que, considerando as reservas de 20% para pretos e pardos, somente em 2060 a população negra (pretos e pardos) atingiria 48% dos servidores públicos. Por outro lado, com a ampliação para 30%, em 2047 chegaríamos a esse mesmo patamar, que ainda está abaixo da proporção da população racial brasileira (negros conformam 56% da população).
Vale dizer que a análise realizada pelo ministério aponta que, à medida que as faixas salariais aumentam, a desproporção fica ainda maior.
A pergunta que devemos nos fazer é: por que esperar? O que justifica a decisão de atrasar em 13 anos a possibilidade de garantir uma distribuição mais justa dos cargos públicos federais?
Beatriz Lourenço – Diretora de Incidência Política do Instituto de Referência Negra Peregum
Vanessa Nascimento – Professora, é diretora-executiva do Instituto de Referência Negra Peregum
Douglas Belchior – Coordenador executivo de Advocacy do Instituto de Referência Negra Peregum