Coronavírus: o que está por trás da aparente resistência da África à pandemia

Enviado por / FontePor Norberto Paredes, da BBC

Embora os especialistas alertem que ainda é muito cedo para cantar vitória, o “desastre iminente” previsto por John Nkengasong, diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da África, ainda não ocorreu.

Enquanto a Europa responde por mais de 1,5 milhão de casos confirmados, os Estados Unidos ultrapassam 1,3 milhão e a América Latina está perto de 250 mil, o continente africano tem até agora 55 mil infecções.

Seu número de mortes relativamente baixo é ainda mais surpreendente: até 8 de maio, essa região do mundo registrava pouco mais de 2 mil óbitos, muito menos do que outros continentes ou mesmo se comparado a uma cidade como Nova York, que já passou de 20 mil mortes.

Esses números são mais impressionantes diante do fato de a África ser o segundo continente mais populoso do mundo, com 1,2 bilhão de habitantes.

Mas o que está por trás da aparente resistência do continente africano à pandemia de coronavírus e por que existem tão poucos casos relatados de covid-19?

Diversidade de abordagens

Os países africanos mais afetados, até 11 de maio, são a África do Sul, com 10.015 casos, o Egito com 9.400, o Marrocos com 6.063 e a Argélia com 5.723. Juntos, eles representam quase 50% de todas as infecções na África.

Alguns especialistas argumentam que a explicação para a suposta exceção que o continente se tornou é que os sistemas de saúde locais não conseguem fazer testes suficientes para detectar mais casos de covid-19, principalmente devido à falta de recursos.

Mas outros asseguram que outros fatores também influenciam esta situação. Anne Soy, editora adjunta da BBC na África, explica que há realmente uma situação complexa em um continente com 53 países que confirmaram a presença do vírus e adotaram estratégias diferentes para lidar com ele.

“Há aqueles que tomaram medidas drásticas desde o início e onde o número de casos continua a aumentar, no entanto, existem outros que ainda estão em negação e não estão implementando medidas para impedir a propagação da doença, como a Tanzânia”, diz Soy.

A África tem um número relativamente baixo de infecções e mortes quando comparado a outras regiões do mundo (Foto: Getty Images via BBC News Brasil)

O presidente da Tanzânia, John Magufuli, é um dos poucos líderes mundiais que continua a minimizar a gravidade do vírus. Na semana passada, ele questionou a precisão dos testes para covid-19 e demitiu o chefe do laboratório nacional de saúde encarregado de realizá-los, denunciando uma “trapaça”.

Magufuli já havia pedido aos tanzanianos que rezassem para que o coronavírus desaparecesse, e seu governo não oferece atualizações diárias sobre o progresso do surto.

Reações rápidas dos países africanos

Apesar de algumas exceções, a maioria dos países africanos tomou medidas “mais rapidamente do que o resto do mundo”, observa Soy.

“Ruanda foi um dos primeiros a implementar o confinamento quando tinham menos de 20 casos confirmados. Eles fecharam a fronteira e interromperam os voos internacionais”, afirmou.

A África do Sul, o país do continente que até agora reportou o maior número de infectados, impôs desde 27 de março um dos mais rígidos regimes de isolamento do mundo, com proibição de todos os voos comerciais e até da venda de bebidas e cigarros.

Mas, principalmente devido à queda na atividade econômica da África do Sul, suas autoridades de saúde começaram a relaxar algumas medidas na semana passada.

Experiência com epidemias

Embora a pandemia de coronavírus seja a mais grave crise de saúde de nossa geração, está longe de ser a primeira. Especialmente na África, um continente que enfrentou severas epidemias de malária, tuberculose, cólera, HIV e ebola.

Todas essas doenças tiraram vidas, mas também forçaram a comunidade científica e médica africana a inovar.

“A população africana está acostumada a reagir rapidamente, a recorrer a voluntários no meio rural. Acho que isso lhes permitiu circular informações sobre medidas de prevenção e aplicá-las a tempo”, diz Karl Blanchet, especialista em saúde global e emergências sanitárias no Centro de Genebra para Educação e Pesquisa em Ação Humanitária (Cerah).

A recente epidemia de ebola que atingiu a África Ocidental, com maior intensidade entre 2014 e 2016, causou estragos em países como Guiné, Libéria e Serra Leoa e deixou mais de 11 mil mortos.

Embora a OMS tenha declarado o fim da emergência sanitária na região em março de 2016, as autoridades ainda estão em alerta em alguns dos países mais afetados pelo surto devido ao aparecimento de casos isolados.

“O ebola era um problema que ainda existia quando a pandemia da covid-19 foi declarada. Isso significa que alguns países africanos já tinham infraestrutura de detecção nos aeroportos. Autoridades de saúde pública e termômetros sem contato já estavam posicionados nas portas de entrada”, explica Soy.

O surto de ebola também ensinou à África a importância de detectar casos rapidamente, tratar os pacientes confirmados e isolar comunidades, diz a jornalista da BBC.

“Por causa daquela epidemia, as pessoas até pararam de apertar as mãos na África Ocidental e na República Democrática do Congo. Elas se conscientizaram de que isso é importante”, acrescenta.

Um continente menos globalizado

Frederique Jacquerioz, especialista africano em saúde pública da equipe de medicina tropical e humanitária do Hospital Universitário de Genebra, na Suíça, estima que outro fator que pode explicar a resistência da África à pandemia é a baixa circulação existente entre os países do continente e o resto do mundo.

“Os primeiros casos confirmados na África foram jovens, africanos ou europeus, que viajaram, retornaram à África e trouxeram o vírus com eles”, diz o médico.

Ruanda impôs medidas de contenção quando tinham menos de 20 casos confirmados (Foto: Getty Images via BBC News Brasil)

“Em um mundo globalizado, esse foi um dos fatores que alimentou a disseminação do vírus na Europa, onde grupos de jovens passam fins de semana em diferentes cidades. Talvez na África, nesse sentido, haja menos mobilidade entre os países.”

Essa hipótese é apoiada por vários especialistas. Blanchet, da Cerah, dá como exemplo três dos países que até agora foram os mais afetados pelo vírus: África do Sul, Egito e Argélia.

“Eles são os países com maior número de ligações aéreas com a China. A exceção é a Etiópia, que apesar de não estar nesse grupo, tem uma conexão direta com o país asiático. Mas ainda não foi afetada pela pandemia. Isso é algo que não pode ser explicado”, diz ele.

Existe um fator demográfico?

A pirâmide demográfica africana é outro elemento que pode ter ajudado o número de mortos na região a não ser maior: a África é o continente com a população mais jovem do mundo.

Blanchet acredita nesta hipótese e destaca que “a idade média na África é de 19,7 anos, enquanto na Europa é de cerca de 40 anos, por exemplo”.

Embora Anne Soy reconheça que esse poderia ser um dos fatores, ela alerta que ainda não há estudos científicos para apoiar essa teoria.

“Pode ser uma das vantagens da África, mas, ao mesmo tempo, você também tem uma grande população de crianças desnutridas, com um sistema imunológico mais fraco, do que no resto da população mundial, o que as torna mais vulneráveis. Isso significa que teríamos que ver mais crianças africanas afetadas do que no restante do planeta?”, questiona a jornalista.

Os riscos do continente

Na sexta-feira, a OMS alertou que o coronavírus na África poderia “arder lentamente” por vários anos e matar cerca de 190 mil pessoas nos próximos 12 meses.

Esse aviso veio um mês depois de a agência estimar que o surto causaria 10 milhões de infecções no continente dentro de seis meses.

O mesmo relatório de sexta-feira prevê que entre 29 milhões e 44 milhões de pessoas poderão ser infectadas no primeiro ano da pandemia de covid-19 se as medidas de contenção no continente falharem.

Vários analistas enfatizam que o impacto da pandemia realmente dependerá das ações que os governos tomarem.

O diretor da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, Stephen Karingi, disse ao jornal britânico The Guardian que é preciso reconhecer que as autoridades africanas estão “fazendo muito” para conter o surto.

“As projeções eram de que agora estaríamos em uma situação de guerra, mas devido a medidas tomadas por governos e comunidades, as taxas de transmissão são mais baixas do que as que já vimos em outros lugares.”

Soy avalia que as restrições de movimento retardaram a propagação do vírus, mas as autoridades devem permanecer vigilantes, especialmente nas favelas da África.

“Eles têm alta densidade populacional e serviços de saúde muito ruins. Algumas delas sequer têm acesso à água”, diz a jornalista.

Soy destaca que a maioria de seus habitantes teriam problemas em permanecer confinados por um longo tempo, porque são trabalhadores informais que não conseguem comer se não saem para trabalhar.

Apesar da diversidade de opiniões e debates sobre por que a África resistiu melhor à pandemia de covid-19 que as outras regiões mais ricas em recursos, a grande maioria dos especialistas concorda que ainda é cedo para falar de uma “exceção africana”.

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