Cotas no ensino superior: uma política bem-sucedida

Tendência é que se tornem desnecessárias, mas num futuro ainda distante

Para um país que historicamente se pensava como uma democracia racial e, portanto, sem a necessidade de enfrentar o racismo e suas consequências, a criação de cotas no ensino superior já foi em si um marco histórico.

Mas, 20 anos após a primeira experiência com cotas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e uma década depois da aprovação da lei federal de cotas, resta questionar: essas políticas foram bem-sucedidas? Apesar das dificuldades em obter dados integrados sobre o ensino superior e de alguns problemas localizados na lei, as informações até agora coletadas nos permitem responder afirmativamente à pergunta.

Essa é a conclusão, até agora, do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, uma iniciativa coordenada pelos grupos Afro-Cebrap e Gemaa-Uerj, que congrega especialistas de universidades como UFBA, UnB, UFRJ, UFMG, UFSC, Uerj e Unicamp. Pesquisadores como Adriano Senkevics e Úrsula Mello vêm mostrando que a lei foi o principal indutor da diversificação racial e econômica do ensino superior federal. Entre 2012 e 2016, o percentual de ingressantes oriundo de escolas públicas nas instituições federais pulou de 55% para 64%. O grupo mais beneficiado pela política foram os pretos, pardos e indígenas da rede pública, que hoje são mais de 50% dos matriculados.

Diversas pesquisas mostram que o desempenho acadêmico de cotistas é muito similar ao de não cotistas. Aliás, a maioria das pesquisas empíricas sobre as cotas consideram que a política atingiu seus fins. Um levantamento de mais de 900 artigos científicos em curso no consórcio mostra que 71% deles consideram a política bem-sucedida, contra 18% que destacam problemas localizados e apenas 11% que a consideram malsucedida.

Todo esse sucesso reflete o bom desenho institucional da Lei de Cotas, fruto de diversos experimentos com ações afirmativas feitos autonomamente por instituições de ensino superior antes que o regramento federal fosse aprovado. Durante uma década, essas instituições testaram diferentes modelos, de políticas de bônus no vestibular a cotas exclusivamente baseadas em critérios de classe. Depois de anos utilizando uma política de bônus, a Unicamp concluiu que a diversificação racial e socioeconômica da universidade atingia só os cursos de menor prestígio, o que justificou a transição para um sistema de cotas. Embora muitos desses experimentos tenham tido sucessos pontuais, as cotas combinando critérios socioeconômicos e raciais se revelaram de longe a modalidade mais efetiva de inclusão.

Diante de todos esses sucessos, alguns podem contra-argumentar que a política de cotas já cumpriu o seu papel e que é chegada a hora de interrompê-la. No entanto, os números apresentados aqui certamente mudariam caso as cotas fossem suspensas.

Enquanto medida emergencial e provisória, as cotas tendem naturalmente a ser abandonadas caso sua eficácia seja atingida. Isso porque os potenciais beneficiários da política podem obter notas suficientes para entrarem sem as cotas, o que a rigor já acontece em alguns casos. Um estudo publicado pelo Gemaa em 2014 mostrou que em 11% do Sistema de Seleção Unificada do MEC, a nota de corte dos cotistas foi maior que a nota dos candidatos de ampla concorrência. A tendência natural, se as cotas atingirem seus fins, é que esse percentual cresça, tornando a própria política desnecessária.

Mas esse futuro ainda é distante. Está previsto no artigo 7º da lei uma revisão que não tem nenhuma relação com a sua vigência. Ou seja, a Lei de Cotas não expira em 2022, como tem sido propalado. Como argumentam Bruna Santos e Juliana Santos, advogadas da Rede Liberdade, a interpretação jurídica correta é que a Lei de Cotas deve permanecer até que uma revisão mostre que seus fins foram plenamente alcançados. Nesse sentido, ela não exige uma revisão para a sua continuidade, mas o oposto: é preciso que os estudos sobre seu desempenho mostrem sua ineficácia para que ela seja cancelada ou reformada.


Luiz Augusto Campos

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa)

Márcia Lima

Professora do Departamento de Sociologia da USP e coordenadora do Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

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