Crimes de racismo e injúria racial estão em alta no Distrito Federal

A capital do país está em alerta para ocorrências criminosas contra credo, cor, idade e deficiência. Em comparação com 2020, o ano passado registrou um aumento de 28% dos casos.

A cada dois dias, ao menos três pessoas são vítimas de injúria racial na capital do país. Ao todo, o último ano contabilizou 562 casos, um aumento de 28% se comparado com 2020, ano da pandemia. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) e apontam, também, para um aumento no registro de ocorrências de racismo. A prática criminosa deixou a marca de três denúncias, em 2019, para 15, no ano passado. Este ano, o alerta é para a tendência de aumento dos casos. Levantamento exclusivo feito pelo Correio aponta que, se comparados os nove primeiros meses deste ano com 2021, os registros de injúria racial no Distrito Federal aumentaram em 8,8% (veja raio-x).

Doutorando em direito e relações raciais, Danilo Rabelo avalia que o cenário é agravado porque os movimentos negros não são reconhecidos. “Hoje, a nossa política nacional é mais próxima dos senhores de escravos do que dos escravizados. O racismo é estrutural e a forma como a história é contada passa a ideia de que o povo negro não lutou, como se não tivéssemos buscado nossa liberdade. O que acontece é que nossas lutas não são reconhecidas”, lamenta.

Danilo ressalta que o racismo sempre esteve presente na realidade do Brasil. “Embora as pessoas pregassem que não éramos um país racista por sermos multiculturais, sempre tivemos barreiras de cor. O nosso racismo foi calcado na eugenia, na ideia de branqueamento. No Distrito Federal, 60% da população é negra, mas não é ela que ocupa os cargos mais bem remunerados, nem os cargos de chefia, nem a maior parte de lideranças políticas. Guerreiro Ramos, importante sociólogo negro, defendia que precisamos lembrar que o povo brasileiro é essencialmente negro”, cita.

A injúria racial, no entanto, não abarca apenas a questão da cor da pele. O advogado criminalista Luiz Antônio Calháo explica que o crime engloba ofender alguém com base na cor, raça, etnia, religião, idade ou deficiência. “Os crimes de injúria racial e racismo são diferentes. A injúria é prevista no Código Penal, dentro dos capítulos do crime contra a honra, enquanto racismo está previsto em legislação própria, na lei 7.716. A maior diferença é que na injúria, a ofensa é direcionada a uma pessoa específica, enquanto o racismo engloba a sociedade, a coletividade, um grupo de pessoas específicas (daquela mesma etnia, mesma deficiência ou afins)”, detalha.

Danos psicológicos

De acordo com o levantamento exclusivo do Correio, os nove primeiros meses deste ano já registraram 456 ocorrências de injúria racial, enquanto em 2021 foram 419 casos. Larisse*, 41 anos e ialorixá, conhece bem os efeitos do preconceito. No começo de 2019, foi vítima de diversos ataques de vizinhos e da mídia por ser mãe de santo. “Eles começaram a dizer que eu fazia bruxaria, magia negra, que minha casa era um local de abuso. Sendo que eu estava atendendo uma mãe que tinha me pedido ajuda para o filho”, relata.

O episódio, contudo, não foi isolado. “As pessoas jogam pedra no barracão em que eu vivo. Elas ofendem a gente, nos tratam mal. Somos condenados e nem podemos procurar a Justiça, porque a polícia, o juiz, o escrivão, vai ter uma opinião errada das religiões de matrizes africanas”, conta. Devido aos ataques que sofreu, Larisse passou por um momento de depressão e síndrome de pânico, com medo de repressão física. “Fiquei anos sem conseguir nem falar sobre isso. Agora eu até conto a minha história, mas ainda sinto o mal que fez ao meu corpo e a minha mente. É muito triste o que vivemos”, relata.

Titular da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), Ângela Santos avalia o aumento do número de injúria racial devido ao crescimento das denúncias que são realizadas pela população. “E é importante que as pessoas continuem denunciando, que levem esses casos à polícia. Porque trabalhamos em cima dos dados que temos; investimos em campanhas de acordo com os levantamentos que são realizados”, detalha. Ângela, contudo, acrescenta: “Mas, como agente de polícia, não vejo isso como um aumento dos casos de injúria racial, acho que estamos tendo uma mobilização pela denúncia. Agora, no DF, temos uma delegacia especializada, que acolhe essas pessoas, e desenvolvemos um trabalho conjunto em diversas frentes, justamente para incentivar o registro dessas ocorrências”, relata.

A delegada-chefe da Decrin adiantou ao Correio que até o próximo ano o órgão pretende adiantar um protocolo de atendimento às pessoas negras. “Já temos uma normatização para a população LGBTQIA , e nosso foco é desenvolver também um protocolo de atendimento nas demais frentes, como religião e pessoa com deficiência. O dos negros queremos concluir até o ano que vem. Quando ele estiver pronto, iremos em cada delegacia e daremos treinamento aos agentes”, conta. Ângela relata que os agentes da Decrin se dedicam em acolher as vítimas. “Quando essas pessoas chegam aqui, não podemos menosprezar a dor que elas nos relatam. Muitas vezes, elas vem aqui e não contam apenas um episódio de injúria ou racismo que querem denunciar, mas a história de uma vida inteira de sofrimento relacionado a discriminação”, avalia.

cidades racismo (foto: valdo virgo)

Avanço na legislação

Leonardo Pantaleão, especialista em direito e processo penal, defende a necessidade de avanços na Lei. “O Poder Judiciário é restrito aos limites legais. Então quando se pensa em melhorias, tem que ser com base na nova legislação, que o Judiciário possa aplicar penas mais rigorosas para esse tipo de crime. O Estado tem o dever de conscientizar ininterruptamente, em sistemas de educação, em sistemas de prevenção, a prática desses delitos. O Estado tem, sem dúvida alguma, que criar mecanismos jurídicos em que o Poder Judiciário possa ser mais rigoroso”, aponta.

Jailson*, 24 anos, estudante de teatro e morador de Planaltina-DF, entende o que é ser vítima até de quem deveria protegê-lo. “Um dia cheguei tarde, vindo de uma festa, já estava de frente de casa, com o celular na mão e mandando mensagem para o meu irmão abrir o portão porque eu andava sem chave. Do nada, parou uma viatura gritando para eu colocar a mão para cima, largar o celular no chão. Fiquei perguntando o que estava acontecendo, dizendo que eu morava ali. Mas não importava para o policial”, narra. O estudante de teatro relata que a vida foi marcada por esses episódios. “As pessoas mudam de calçada, dizem que meu cabelo é ruim. Quando eu vou para a festa com amigos, sempre sou eu que vou levar baculejo”, finaliza.

*nomes fictícios a pedido dos entrevistados

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