Crise superlativa na saúde do Rio vai além do transplante com HIV

As investigações têm de sair da superfície, ir muito fundo

O Rio de Janeiro vive uma crise superlativa na saúde. Nem a epidemia de furtos de telefone celular (24.341 até agosto), que dominou a corrida municipal, nem a multiplicação de ônibus sequestrados para barricadas (136 em 12 meses) em territórios dominados pelo crime organizado têm o condão de disfarçá-la. O estado governado por Cláudio Castro (PL), reeleito em primeiro turno há dois anos, produziu inédita mácula numa política pública tão importante quanto reconhecida. Nunca antes na história do Sistema Nacional de Transplantes pacientes tinham recebido órgãos infectados por HIV. O desmazelo do PCS Lab Saleme — ora alvo de investigação tanto pela Polícia Civil quanto pela Polícia Federal — com o protocolo de admissão de doadores impôs a seis transplantados uma vulnerabilidade adicional inadmissível.

Familiares de pessoas que já passaram por transplante relatam, com emoção, a trajetória de desolação, preocupação, apreensão e esperança que vai do diagnóstico à recepção. Apenas no ano passado, o Brasil realizou 28.533 intervenções, das quais 9.255 de órgãos sólidos, caso de rim, fígado, coração, pulmão, pâncreas e intestino. São brasileiros e brasileiras que, com saúde debilitada, esperam em média dois anos pela cirurgia. Quando bem-sucedida, sabem que terão de tomar, pelo resto da vida, imunossupressores para não haver rejeição do órgão recebido.

— Pacientes transplantados são naturalmente vulneráveis a infecções por bactérias, vírus, fungos. Por isso são acompanhados pela equipe transplantadora, passam por exames, comunicam qualquer sintoma. Não é inédita a infecção por HIV depois de transplantes, com a volta à normalidade, incluindo a vida sexual. Mas foi a primeira vez no Brasil que pacientes receberam órgãos infectados. Eles não precisavam passar por isso, não precisavam de mais esse problema — diz Patrícia Freire, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes, há duas décadas no Ministério da Saúde.

De norte a sul, os estados brasileiros seguem normas rígidas para abordar famílias de potenciais doadores, examiná-los e viabilizar as cirurgias. O paciente é avaliado clinicamente e passa por uma série de exames que determinam se os órgãos podem ser transplantados. O rol de exclusão absoluta envolve da testagem positiva para tuberculose, HIV e septicemia refratária (resistente a antibióticos) à possibilidade de câncer. Nesses casos, a família é informada da impossibilidade, o doador é descartado, e o órgão nem sequer é captado.

A violação a protocolo tão rigoroso —cumprido de Santa Catarina a Rondônia, do Pará ao Paraná, da Bahia a São Paulo — é o que faz o caso descoberto em setembro passado no Rio ser tão grave. A fraude foi descoberta porque o processo de transplante foi inteiramente revisto quando um paciente apresentou sintomas. A infecção por HIV foi constatada, e a origem identificada quando a amostra de sangue do doador foi reexaminada pelo Hemorio, instituição pública de reputação ilibada.

Com o laboratório privado sob suspeita, todas as 286 amostras de doadores, obrigatoriamente guardadas, foram revistas. Ficou claro que o laboratório emitiu não um, mas dois laudos negativos. Assim, seis pacientes foram infectados com o HIV. Agora, além do acompanhamento permanente a que já se submeteriam, terão de ser mais cuidadosos com infeções oportunistas, vacinas, interações medicamentosas, sintomas. Enfrentarão mais desafios no tratamento de saúde, em razão da pulsão por dinheiro de um punhado de gente gananciosa e sem ética.

O secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Felipe Curi, disse que, para lucrar mais, o PCS Lab Saleme reduziu de diária para semanal a frequência de análise dos reagentes nos exames de controle de qualidade. Nesta semana foram presos quatro envolvidos no caso: três técnicos e um dos sócios do laboratório, o ginecologista Walter Vieira, casado com uma tia do deputado federal Dr. Luizinho, ex-secretário estadual de Saúde e figura influente no setor. Na pasta, fez a sucessora, Cláudia Mello, apontada pelo próprio governador Cláudio Castro como “braço direito” de Luizinho. Líder do PP na Câmara dos Deputados, o parlamentar chegou a ser cotado para assumir o Ministério da Saúde.

O escândalo envolvendo órgãos infectados não se esgota no programa de transplantes. Nos últimos anos, o PCS Lab Saleme firmou contratos milionários com o governo fluminense, prestava serviços laboratoriais para ao menos uma dúzia de hospitais do estado. Por mês, eram realizadas 73 mil análises clínicas e de anatomia patológica. Desde 2020, atendia também a Prefeitura de Nova Iguaçu, cidade da Baixada que é base eleitoral de Dr. Luizinho. Os contratos com o estado e com o município foram suspensos depois do escândalo. As investigações têm de sair da superfície, ir muito fundo e, oxalá, extirpar o mal que afeta a saúde no Rio não é de hoje.

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