Cultura do estupro e a universidade

Texto do Movimento Honestinas – Movimento de esquerda da Universidade de Brasília (UnB).

No final dessa semana a Universidade de Brasília vivenciou um momento repugnante para quem tem um mínimo de sentimento de alteridade. Dois alunos apareceram na recepção dos/as calouros/as, no dia do resultado do Vestibular, com o cartaz “Caiu na Redes é ESTUPRO”, fazendo, a título de brincadeira, uma clara apologia à violência sexual historicamente sofrida pelas mulheres de todo o mundo.

 

A comunidade acadêmica toda se revoltou, todo mundo compartilhou notas de repúdio que traziam um sentimento geral de indignação. O incidente foi, inclusive, parar na mídia, que também se posicionou. O caso teve muita visibilidade e se consolidou entre as pessoas que fizeram comentários algum consenso de que, no mínimo, aquela havia sido uma piada de muito mau gosto.

Porém, interessante observar como na maioria das manifestações das pessoas vinha à tona um discurso de que se tratava ali de comportamentos isolados e individualizados. A própria nota do grupo político que dirige o Diretório Central das/os Estudantes dizia que se esperava que “não fossem estudantes da UnB e, se forem, estamos certos de que não representam o pensamento dos estudantes de Engenharia de Redes.”

Essas falas tentavam individualizar a questão, sem refletir o machismo enquanto ideologia estruturante de toda nossa sociedade. Não, o problema desse cartaz não é de apenas dois rapazes entre nós! Não é tão simples assim: a frase deles reproduz tudo o que é natural que uma pessoa reproduza tendo passado passado por anos por escolas, por canais de TV, por telenovelas, por stand up que educam pessoas para o machismo, para a cultura do estupro; a frase deles representa o pensamento dos estudantes de Engenharia de Redes, mas também do Direito, do Serviço Social, da Economia… representa nosso cotidiano, independentemente se estudam na UnB ou não. Infelizmente ocorre porque estes preconceitos estão internalizados em todos/as nós e os reproduzimos quando não fazemos uma análise crítica.

Mais triste do que pensar que existem pessoas que acham legal fazer piada com séculos de violência e domínio sobre os corpos femininos é notar que essa é uma opressão que está nas nossas falas, na nossa postura. Somos tendenciosos/as em acreditar que homofobia e machismo são coisas de pessoas como Marco Feliciano, sem problematizar que o que ele fala está mais presente no nosso meio que imaginamos.

Fazer essa reflexão é importante para sabermos como agir frente a esses discursos, que não são isolados da forma como se conflitam as pessoas nas relações de poder da sociedade como um todo. Em entrevista ao site do Estadão, a Reitoria da UnB cogita como medida, em reposta ao cartaz, a expulsão desses dois estudantes da Universidade. Observemos que a possível solução encontrada dialoga não só com a tentativa de individualizar um problema que é coletivo, mas também isenta a própria Universidade de assumir para si a responsabilidade de construção de um ambiente que se preocupe com a pauta da igualdade de gênero.

Expulsar essas pessoas é adotar uma prática pedagógica que foge do debate e da real disputa de consciência. Essa lógica punitivista é incompatível com o ideal libertário com que sonhamos e é por isso que o que devemos exigir é uma postura que assuma a centralidade da luta cotidiana para a transformação da realidade. Expulsar o machismo de fato significa desconstruir premissas do senso comum, modificar posturas, ser incansável ao se posicionar contra qualquer forma de opressão, se questionando frente a elas a todo instante. A expulsão varre a sujeira pra debaixo do tapete, mantendo a opressão ainda mais velada.

Devemos entender que o machismo é um problema nosso que demanda um esforço diário e coletivo para sua necessária desconstrução. Continuemos manifestando nosso repúdio frente a comportamentos como o do cartaz, continuemos unidas/os, ousadas/os. Acreditar que se faz muito adotando uma medida que não reflete a opressão enquanto ideologia dominante é operar pela sua manutenção. Esperar que apareça um cartaz, uma pichação, ou até um estupro para se posicionar é um recuo. Se temos uma real preocupação com a pauta, a iniciativa deve partir de nós.

Fonte: Blogueiras Feministas

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